Realizada na Residência Oficial do Embaixador em Lisboa, a celebração do 7 de Setembro na capital portuguesa aconteceu nesta quinta-feira, no primeiro logradouro da “Avenida das Descobertas”, e não da Invasão. Apesar do genocídio indígena e dos mais de três séculos de escravidão, a cerimônia tratou a data como a celebração de um processo de “civilização” de povos atrasados.
E nem foi preciso chamar um português para nos lembrar que a nossa Independência não foi decretada por nós mesmos.
Após a execução dos hinos de Brasil e Portugal, o embaixador brasileiro Raimundo Carreiro começou o seu discurso dizendo que “devemos o nascimento da nação brasileira aos portugueses”, endossando a narrativa de que foi com a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, que D. João VI foi capaz de promover e dar condições para que o Brasil se tornasse independente de Portugal.
Debaixo de um sol escaldante, as únicas lembranças da presença de povos africanos no imenso jardim da Casa Oficial do Brasil foram nos momentos de agradecimento aos representantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da feijoada servida durante o almoço.
Os agradecimentos aos colonizadores continuaram com a lembrança de que Portugal que deu ao Brasil seu primeiro imperador (D. Pedro I, conhecido entre os portugueses como D. Pedro IV) e que a rainha Dona Maria Segunda, nascida no Brasil, concebeu os dois monarcas que governariam o país europeu até o final do século XIX – mas omitindo o fato de que estes iniciaram a decadência do sistema que sucumbiria em 1910, com a Proclamação da República Portuguesa.
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Talvez tenha sido essa a inspiração para a atração cultural que viria a seguir, com dançarinos bailando ao som do maracatu trajados de reis e rainhas, enquanto outros membros do grupo estavam “fantasiados” de indígenas, pulando ao som do frevo pernambucano.
A cerimônia também enfatizou o importante tratado luso-brasileiro, assinado em 1825 e que marcou o início das relações entre os dois países enquanto Estados soberanos – mas que concedeu benefícios apenas a uma parcela da nação, que ainda vivia sob um sistema de comércio escravagista herdado dos colonizadores.
Entre coxinhas, pães de queijo e caipirinha gelada, mais um briefing histórico que poderia ser uma questão de vestibular. Dessa vez, o resgate veio de um discurso do então presidente português António José de Almeida que, durante o centenário da Independência do Brasil, visitou o Rio de Janeiro anunciando que Portugal contaria para sempre com o “país-irmão” do outro lado do Atlântico.
Stefani Costa
Cerimônia tratou a data como a celebração de um processo de “civilização” de povos atrasados
Raimundo Carreiro também fez questão de recordar a fatídica participação do presidente português Marcelo Rebelo de Sousa na sessão solene do Bicentenário da Independência realizado em Brasília, no Congresso Nacional, em 7 de setembro de 2022. Apesar do pedido para que o Brasil continuasse a ser uma pátria de liberdade, democracia, justiça e esperança, vale salientar que foi ao lado de um golpista que tal solicitação aconteceu.
O otimista é um tolo
Sem dúvida o ponto ápice do 7 de Setembro em Lisboa foi o reconhecimento de uma nova dinâmica implementada pelo governo Lula para retomar os laços entre Brasil e Portugal.
Mesmo com todas as falhas existentes no decorrer deste processo histórico, não se pode negar a realidade quando o assunto é desenvolvimento e imigração. Afinal, como disse o mestre Ariano Suassuna: “o pessimista é um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.
Nos últimos 10 anos, o fluxo de investimento e comércio bilateral entre os dois países dobrou, e foi acompanhado de um aumento significativo da comunidade brasileira em Portugal. De acordo com os dados apresentados no último relatório do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), órgão do governo português responsável por conceder residência a cidadãos de outros países, os brasileiros já compõem 30,7% do total dos estrangeiros residentes.
Ao dizer que Lula optou por escolher Portugal como destino da sua primeira viagem à Europa, já no início do terceiro mandato, o embaixador brasileiro exaltou a retomada da conferência luso-brasileira, que não acontecia há sete anos. Também ressaltou a importância dos 13 acordos assinados entre os dois países, os quais cobrem temas como educação, saúde, direitos humanos, energia, imigração, cultura e turismo.
Um novo tempo
É legítimo que brasileiros e brasileiras tenham a liberdade de migrarem em busca de melhores oportunidades de vida. Mas, também é importante lembrar que essa condição de bem-estar social europeu (mesmo em territórios mais dependentes economicamente, como Portugal) foi criada e mantida através da exploração de países periféricos, e o Brasil foi um deles.
Em um momento onde a xenofobia e o racismo tomam conta do discurso político, inflamando o dia a dia de milhares de trabalhadores ressentidos com a crise provocada pelo capitalismo, a lógica do colonialismo precisa estar presente em todos os discursos que exaltam a independência de um povo. Só assim para que a retórica do “país-irmão” não seja usada apenas como mais um aval superficial de quem nos explorou durante tantos séculos.
É obrigação que nós, brasileiros e portugueses, lutemos para que a memória desse passado colonial e escravocrata permaneça viva em nossos cotidianos e também nos discursos daqueles que, de alguma forma, foram escolhidos para nos representarem, pois só assim seremos capazes de transformar a realidade naquilo que gostaríamos que ela fosse, seja no Brasil ou em Portugal.