Com dois anos de atraso, o filme “Marighella” estreou no Brasil nesta quinta-feira (04/11), dia do aniversário de 52 anos do assassinato do personagem principal da obra, Carlos Marighella. Dirigido por Wagner Moura, a trama não ludibria seu público na busca por uma neutralidade ideológica, talvez porque mesmo se quisesse não o conseguiria, já que a trajetória da produção foi alvo de críticas daqueles que tentam encontrar narrativas distintas para a ditadura militar brasileira (1964-1985).
Baseado no livro Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, o roteiro foca nos últimos anos de vida do militante comunista, apresentando aquele que foi conhecido durante os anos de chumbo como o “inimigo número um” do país.
Com esse recorte, o filme acompanha a história de Marighella entre 1964, no começo da resistência contra o recém instaurado regime militar, e 1969, quando, em uma emboscada, o militante é fuzilado, aos 57 anos, por agentes da ditadura. É possível que o tempo histórico escolhido se justifique na apresentação dos momentos de maior tensão de uma vida que foi marcada pela militância e pela luta.
Nascido na Bahia, Carlos Marighella era filho de um operário italiano e de uma baiana descendente de escravos sudaneses. O filme inicia no momento em que o militante acusava o Partido Comunista Brasileiro (PCB) de organizar uma resistência branda contra o regime militar, motivo que fez o guerrilheiro se afastar do partido para buscar na luta armada uma forma de se opor à ditadura.
Durante as mais de duas horas de filme, porém, um debate sobre essas ideias e propostas que eram levantadas pelos diversos setores da esquerda na época é pouco explorado, dando lugar aos desafios pessoais que Marighella encontrava ao conciliar dramas subjetivos com a resistência, em um movimento que talvez busque criar identificação entre o público e a trajetória do baiano. Deste modo, persiste uma aparência de que o filme busca apresentar quem foi Marighella para fora das rodas que defendem seu legado, dirigindo-se a uma audiência que possa apreciar também outros aspectos, como as cenas de ação e perseguições policiais.
A direção de Wagner Moura apresenta outros personagens que personificam as múltiplas formas de resistências levadas a cabo contra a ditadura militar brasileira, apontando ainda as dualidades entre a vida pessoal daqueles que tinham distintas responsabilidades para além da militância.
Paris Filmes/ Dowtown Filmes/ Divulgação
Ator Seu Jorge interpreta o revolucionário baiano que foi fuzilado em uma emboscada aos 57 anos
Uma outra demonstração do paralelo entre a simbologia de Marighella e os personagens do enredo é a presença da força feminina, seja na resistência armada ou não. Como no papel da jovem militante Bella, interpretada por Bella Camero, que se conecta com dezenas de tantas outras companheiras que bateram de frente contra a opressão militar. Mulheres essas que seguem sendo representadas nos dias de hoje, na luta de outras militantes.
É quase impossível que ao longo da trama não encontremos diálogos que fazem algum sentido com a atual conjuntura do Brasil, governado pela ultradireita, ao mesmo tempo que os próprios debates ideológicos presentes no longa colocam em xeque qualquer tentativa que possa inverter as dimensões do conceito de “patriotismo”. Se por um lado a polícia – representada brilhantemente por Bruno Gagliasso como o delegado Lúcio – afirma que age em nome do “orgulho patriótico”, por outro, um guerrilheiro preso, torturado no pau de arara e ensanguentado, contesta: “Não, vocês perderam”.
As próprias cenas de tortura no enredo não são triviais, estão ali para servir de incômodo aos que banalizam a realidade dos porões da ditadura, nos fazendo entender a dimensão da desumanidade a que tantos brasileiros foram submetidos por ousar lutar e defender a pátria.
Caminhando entre a brutalidade do regime e a vida clandestina da luta armada, a obra, em certos pontos, parece se inclinar a apresentar um Marighella necessário ao momento político atual, que surge da necessidade de resgatar o radicalismo encarnado naquele que, como cantam os Racionais MCs, leva o nome da revolução.
“Esse homem amou o Brasil”, defende no final da trama uma das personagens. Frase pequena, mas que carrega o peso de representar um comunista baiano que morreu na luta de libertação nacional.
Por mais que carregue diversas dimensões políticas, “Marighella” se aproxima mais de uma tentativa de reconectar o Brasil com os que dedicaram e dedicam suas vidas pelo justo, os quais podemos apontar como os “verdadeiros patriotas”. Ao final da trama, em uma cena de pura catarse, apenas um lado estará cantando em total êxtase o hino nacional, como se tirasse de dentro da garganta um grito que estava entalado ali por décadas.