Como diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), gostaria, neste artigo de opinião, de fazer algumas ponderações acerca do título da matéria “Racismo e literatura: Unicamp discute o que fazer com o acervo do cancelado Monteiro Lobato”, publicada em Opera Mundi no dia 18/03/24, que versa sobre o evento realizado no Instituto, no dia 14 de março, cujo título é “O IEL deve cancelar Lobato?”. Para tanto, é preciso, primeiramente, contextualizar o evento, que contou com os seguintes convidados: a coordenadora do Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio”, Roberta Botelho, e os professores do Departamento de Teoria Literária do IEL Alfredo Melo e Marcos Lopes.
Primeiramente, é importante dizer que o Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio” (CEDAE), localizado IEL, existe desde 1984 e se constitui em um espaço de preservação que conta com acervos riquíssimos de arquivos pessoais, institucionais, coleções e fundos pessoais diversificados, e, muitas vezes, únicos, de escritores, artistas e intelectuais brasileiros, bem como de fundos institucionais relativos às principais associações linguísticas brasileiras e latino-americanas e de coleções documentais atinentes a temas ligados à literatura e à linguística brasileiras. Vale inclusive mencionar que a consulta a todos esses documentos mantidos pelo CEDAE é pública e seu acesso é franqueado mediante cuidados e garantias que visam essencialmente à sua preservação.
O acervo de Monteiro Lobato mantido pelo CEDAE começou a ser montado ainda em 1999, por meio da coleção Biblioteca Lobatiana, doada pela então mestranda em Teoria e História Literária no IEL, Cilza Carla Bignotto. Cilza havia encontrado na cidade de Santos, em São Paulo, uma coleção de livros, folhetos e periódicos de/sobre Monteiro Lobato. Com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Cilza adquiriu toda essa coleção e, ao terminar sua pesquisa de mestrado, fez a doação do material para a Unicamp. De lá para cá, a coleção se ampliou com outras doações feitas por Cilza, que conta com várias primeiras edições e traduções de Monteiro Lobato, exemplares da Revista do Brasil, editada pelo escritor, assim como livros de sua autoria publicados em diversos idiomas, como russo, japonês etc.
Ainda em 1999, o CEDAE, junto com a professora Marisa Lajolo, organizou uma exposição da coleção Biblioteca Lobatiana, por ocasião dos 50 anos de morte de Monteiro Lobato, em cuja sessão de abertura estiveram presentes Joyce Lobato, neta do escritor, e seu marido, Jerzy Mateuz Kornbluh, herdeiros de Monteiro Lobato. Ao conhecerem o CEDAE, por intermédio da Professora Marisa Lajolo, demonstraram grande interesse em doar ao Centro o acervo pessoal de Monteiro Lobato, composto por documentos que se referem à vida pessoal e profissional do escritor.
Além da coleção Biblioteca Lobatiana e do Fundo Monteiro Lobato, o Cedae ainda recebeu a doação do Fundo Charley Warren Frankie, em 2005, da então aluna de graduação do IEL Kátia Chiaradia, também por intermédio da Professora Marisa Lajolo. O fundo é constituído, majoritariamente, por correspondências trocadas entre Charley Frankie e Monteiro Lobato.
Em 2013, o CEDAE organizou no Centro Cultural do IEL uma exposição chamada de “Retratos Literários”, que se constitui em um quadro contendo imagens (retratos, autorretratos, fotografias, caricaturas, desenhos), bem como depoimentos, poesias, crônicas etc. sobre escritores que fazem parte do acervo do CEDAE, como Oswald de Andrade, Bernardo Élis, Cecília Meirelles, Jorge de Lima, Flávio de Carvalho, Menotti del Pichia, Carlos Drummond de Andrade, Hilda Hilst e Monteiro Lobato. Essa exposição foi reapresentada no Centro Cultural em 2016 e 2022, na celebração do centenário da Semana de Arte Moderna.
Ainda nesse mesmo ano de 2022, o IEL tinha acabado de inaugurar o Pavilhão dos Docentes, que tinha passado por uma grande reforma e, como ainda estávamos celebrando a Semana de Arte Moderna, trouxemos a exposição do Centro Cultural para o Pavilhão. A exposição ficou então no pavilhão por mais de um ano (de agosto de 2022 a setembro de 2023), quando, no final do mês de setembro, o quadro de Monteiro Lobato foi pichado com a palavra “racista”.
Vale, primeiramente, ressaltar, por um lado, que as imagens que compõem a exposição “Retratos Literários” não têm (e nunca tiveram) como objetivo fazer apologia a quaisquer dos escritores retratados, mas apenas divulgar o acervo do CEDAE, configurando-se, assim, como um convite à consulta às coleções e fundos pessoais riquíssimos acerca dos escritores retratados na exposição. Por outro lado, é preciso destacar que o ato de pichação do quadro de Lobato é também um ato de intervenção, que é simbólico no contexto sócio-histórico atual, pois representa não apenas a ação isolada da pessoa que o pichou, mas também a visão latente de muitas outras pessoas a respeito de Monteiro Lobato e/ou sua obra, envolvendo, inclusive, questões mais amplas, como a própria cultura (atual) do cancelamento e da própria censura.
Por reconhecermos a importância simbólica do ato de pichação praticado no contexto em que está inserido, que envolve questões que estão latentes, consideramos que a melhor ação que poderíamos tomar seria a de realizar um debate acerca do assunto. Foi então a partir dessa consideração que pensamos o título do evento na forma de uma pergunta: “O IEL deve cancelar Lobato?”. O título é, de fato, provocativo, muito embora nossa intenção estivesse relacionada à etimologia da palavra “provocar” (em latim, provocare), que significa “chamar para fora, mandar sair, mandar vir, estimular, exortar”. Nesse sentido, o objetivo do evento foi justamente o de criar a possibilidade de “chamar para fora”, isto é, de estimular um debate sobre uma questão que está latente para muitas pessoas.
Sabemos, outrossim, que provocações podem gerar embates, discordâncias e conflitos de ideias, o que é muito salutar do ponto de vista epistemológico, pois contribui para a construção de conhecimento. Contudo, é necessário que se observem as formas, bem como os espaços onde esses embates de ideias ocorrem. Certamente, não é por meio de redes sociais da internet, onde muitos usuários se valem da aparente “liberdade de expressão” e da notoriedade que lhes é, de alguma forma, atribuída para, não raro, externarem seu ódio, sua intolerância e seus preconceitos. Já vimos, inclusive, aonde isso pode nos levar (vide, por exemplo, as eleições presidenciais de 2018 e 2022, no Brasil).
Infelizmente, tivemos, de alguma forma, atos de intolerância relacionados a esse evento por parte de algumas pessoas nas redes sociais do IEL. Entendo, é claro, que o título e a imagem veiculada na chamada para o evento poderiam causar um certo estranhamento, o que é natural. Todavia, algumas pessoas sequer procuraram entrar em contato para se informar sobre o evento; simplesmente o pré-julgaram com base apenas em um título e uma imagem.
Como lócus, por excelência, da pluralidade e da diversidade, a universidade não apenas pode, mas deve promover espaços de discussão acadêmica sobre temas considerados polêmicos, que são de interesse da comunidade e da sociedade. Foi justamente isso que fizemos no evento do dia 14 de março, em que tivemos um debate muito interessante sobre questões atinentes à obra multifacetada de Monteiro Lobato e sua relação com a cultura atual do cancelamento. E, mesmo sabendo que esse debate poderia, de alguma forma, expor a Direção do IEL, bem como o próprio CEDAE, como, de fato, ocorreu, preferi pecar pela ação em prol da construção do conhecimento acadêmico verdadeiramente qualificado a pecar pela negligência ou indiferença.
Com efeito, a universidade precisa sempre ser capaz de debater assuntos polêmicos, mas sempre tendo como alicerce algo imprescindível: a memória histórica. Esse é o caso de Monteiro Lobato, cujo acervo (a memória histórica), como já mencionado, é mantido pelo CEDAE. Por isso, ao contrário do que faz parecer o título da matéria publicada no site do jornal Opera Mundi no dia 18 de março – que aqui reproduzo novamente – “Unicamp discute o que fazer com o acervo do cancelado Monteiro Lobato”[1], que leva erroneamente o leitor a inferir que o IEL estaria supostamente cogitando a possibilidade de se desfazer do acervo de Lobato (que nem sequer foi cancelado!), conforme já havia dito na minha fala no evento, a permanência do acervo do Monteiro Lobato no CEDAE nunca esteve em discussão, uma vez que tal acervo é um bem incomensurável e fundamental para pesquisas de todos os tipos, consultado por pessoas do mundo inteiro, sem o qual sequer haveria a possibilidade de qualquer tipo de debate minimamente qualificado a respeito do escritor, inclusive para criticá-lo.
Assim, muito mais do que um conjunto de obras e de textos de arquivos e fundos pessoais e institucionais, o acervo de Monteiro Lobato representa uma memória histórica para a humanidade, memória essa que, se nos permite, de alguma forma, rever o passado, nos permite, antes disso, ter um passado; pois, sem memória, não há passado e, se não há passado, não pode haver futuro!
(*) Petrilson Pinheiro é Diretor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp