“Cancelar o acervo ou o conjunto de obras de Monteiro Lobato não fará do Brasil um país menos racista”, defendeu a doutora em Teoria e História Literária focada no autor infantil Kátia Chiaradia a Opera Mundi diante do debate sobre o desuso das obras do escritor pelas acusações de elementos discriminatórios em seus livros.
Em entrevista a Opera Mundi, a pesquisadora, que também produz materiais pedagógicos sobre o autor, disse que o ato de cancelar ou restringir o acesso aos livros de Lobato não é uma estratégia que trata a pesquisa documental ou mesmo o racismo com seriedade. Segundo Chiaradia, ao invés de cancelar Lobato deve-se “estudar e pesquisar autores e escritores negros, como Conceição Evaristo, Lima Barreto e outros”.
“Uma coisa é se os leitores ‘cancelarem’ autores. Isso significa que eles não o lerão mais. As pessoas são livres para lerem e não lerem aquilo que lhes convém. Seus critérios são seus critérios. Outra coisa é ‘cancelar’ um conjunto de documentos que são fonte de pesquisa (sem nem sequer ler algumas das pesquisas já feitas)”, afirmou.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Kátia Chiaradia:
Opera Mundi: há um debate sobre cancelar ou não a obra de Monteiro Lobato. Como você analisa essa discussão? É possível dissociar o autor de sua obra?
Kátia Chiaradia: Essa discussão, embora não com esse termo, está bem forte, desde 2010, depois que o Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação (CNE) moveu uma ação, mais tarde rejeitada pelo Ministério da Educação, contra a obra Caçadas de Pedrinho (1933). Como pesquisadora, não tenho como achar razoável qualquer movimento de cancelamento relativo a produções de obras artístico-literárias, sobretudo de outro tempo. Cancelar é o oposto de nutrir pesquisa, de olhar para o objeto e se perguntar sobre ele, sobre nós.
Quanto à segunda parte da pergunta, para minha perspectiva de leitura e pesquisa, o esperado é justamente dissociar autor e obra. Pessoas são de seu tempo, enquanto as obras se movem no tempo, porque também são nossas, quando as lemos.
Apagar Lobato será apagar as suas edições nas obras de Lima Barreto e Mário de Andrade?
Pois esta é uma excelente pergunta! Não tenho a resposta. Também não tenho uma hipótese. Ela merece uma boa pesquisa documental em um bom acervo.
O que seriam boas soluções para um trabalho de reparação? Como notas de rodapé, conforme exigiu o Ministério da Educação em 2010 na obra Caçadas de Pedrinho?
Por muitos anos fui contrária à inclusão de notas de rodapé em obras polêmicas, no geral, mas tenho notado que elas ajudam aqueles leitores que não buscarão uma segunda obra ou conjunto de obras para tentar contextualizar aquilo que leem. Acredito, neste caso, mais no poder de instrução do que de reparação desses paratextos.
Ocorreu na Unicamp um debate pelo Instituto de Estudos da Linguagem para discutir Monteiro Lobato, levando em consideração as acusações de racismo. Chegou até seu conhecimento este debate? Ele é relevante?
Sim, eu soube logo no início. Eu não chamaria esse evento de debate, tampouco atribuiria à Unicamp sua organização. Tratou-se de um evento que, embora se apresente como bem intencionado pela direção do IEL, parte de um título muito desastrado [“O IEL deve cancelar Lobato?“].
O Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (Cedae) onde está o acervo de muitos escritores, entre eles Lobato, formou muitos excelentes pesquisadores, quase todos orientandos da Marisa Lajolo, já aposentada da Unicamp (e eu fui sua última orientanda). Nenhum pesquisador deste grupo foi convidado. Fomos entender de onde partiu essa ideia do título (ou mesmo do evento) e descobrimos o que é de se esperar de um Instituto de Letras: a ideia não seria abraçar qualquer movimento de cancelamento de acervo, mas o oposto.
Porém, sou profundamente crítica ao título, que, para dizer o mínimo, é descuidado. Há outras frases possíveis para usar a palavra “cancelamento”, tão na moda, que não façam parecer que é uma pergunta. Alguns jovens acharam que haveria uma votação! Isso é não entender do que se trata um acervo, um arquivo. Além disso, o título do evento pode ser desrespeitoso com os doadores dos acervos, geralmente as famílias dos autores. Ao entregar a documentação de grande parte da vida de um familiar, ninguém espera que haverá esse tipo de exposição, com tão pouco lastro nas discussões e práticas de pesquisa.
Eu fui mediadora da doação do acervo de Charley Frankie, um correspondente de Lobato. Essa família doou cartas, fotos e afins para serem estudados, para serem fontes de pesquisa. A hipótese absurda de cancelar um acervo assume que os novos pesquisadores perderão suas fontes documentais. Pesquisa não é achismo, é baseada em estudo, em evidências.
O debate foi denominado “O IEL deve cancelar Lobato?”. Houve críticas sobre uma pré-disposição da universidade em cancelar o acervo usando tais termos no nome do evento. Como a senhora enxerga essa escolha?
Muitos colegas, seríssimos pesquisadores, estão nesse rol a que você alude. Eles entenderam essa predisposição para o cancelamento. Eu os compreendo perfeitamente, mas tenho a hipótese de que se tratou de um título extremamente infeliz, que buscou usar uma linguagem atual, de redes, quase um click bait, para evidenciar certo diálogo com os pedidos de cancelamento, mas não foi bem (re)pensado. Não faz qualquer sentido um Instituto de Letras aventar a ideia de cancelar arquivos. E faz ainda menos sentido para um o centro de documentação, coordenado pela Roberta Botelho, que é seríssima e tem orgulho de ser arquivista.
Uma coisa é se os leitores “cancelarem” autores. Isso significa que eles não o lerão mais. As pessoas são livres para lerem e não lerem aquilo que lhes convém. Seus critérios são seus critérios. Outra coisa é “cancelar” um conjunto de documentos que são fonte de pesquisa (sem nem sequer ler algumas das pesquisas já feitas).
Quais são as possíveis consequências do cancelamento de um acervo? Pode ser classificado como censura?
O rompimento com a ética da pesquisa documental. Os pesquisadores perdem fontes. Não me parece censura, mas falta de reflexão em um mundo novo de urgências na base dos gritos.
Cancelar o acervo ou o conjunto de obras de Lobato não fará do Brasil um país menos racista, mas estudar e pesquisar Conceição Evaristo, Lima Barreto e outros nomes imensos fará.