Sem desafios, as ciências tornam-se presas fáceis das ideologias. Nesse processo, a estéril dialética dos conceitos acaba substituindo a relação vital da teoria com a experiência. Isso vale para qualquer conhecimento científico, independentemente de ser identificado como de esquerda ou de direita por seus defensores ou detratores. De fato, a ideologização ou o enrijecimento das teorias sociais e políticas não é característica de um determinado posicionamento, mas da forma de se situar frente à realidade.
As ciências sociais tendem a congelar a dinâmica da realidade no tempo presente, são levadas pela própria dialética dos conceitos a imaginar a repetição dos acontecimentos, seja numa perspectiva linear ou cíclica, evolutiva ou involutiva, mas em qualquer hipótese suprimindo sempre a contingência do longo prazo. Não existe maior desafio para um cientista social ou político que trazer para o campo da reflexão problemas e questões que ainda não são enxergados pela sociedade com clareza, em função do hábito inercial dos seres humanos de imaginar que a realidade sempre se reproduz da mesma forma, seja no curto prazo ou no longo prazo.
No século XXI, observa-se a emergência de distintos fatores imprevistos agindo de forma convergente. De forma dramática, na primeira década do século, o terrorismo fundamentalista, a crise financeira e a mudança climática global colocaram em cena a vulnerabilidade dos processos atuais de globalização. Mas não por isso o mainstream da ciência política parece perceber a necessidade de imaginar uma abordagem do mundo diferente daquele do século XX.
Os hábitos desenvolvidos na modernidade parecem não permitir que sejam enxergadas as dinâmicas do longo prazo. Muitas coisas têm sido ditas sobre a globalização. Mas nenhuma parece ter situado corretamente o obstáculo epistemológico que ela traz para o campo das ciências sociais. A reconhecida contração do espaço-tempo que a globalização introduz no seio das sociedades modernas, com a conseguinte aceleração dos tempos das dinâmicas sociais, traz de forma radical a contingência do longo prazo para o presente. Isso gera um obstáculo para a percepção das dinâmicas sociais em si mesmas.
É preciso mudar paradigmas
Tanto o terrorismo fundamentalista quanto a crise financeira têm componentes de longo prazo que se enxergam facilmente no curto prazo. Mas o mesmo não pode ser dito com relação à mudança climática. Ela obriga a introduzir no seio dos paradigmas costumeiros das ciências sociais categorias e pressupostos forâneos, provenientes das ciências físico-naturais. A mudança climática obriga a uma mudança de paradigmas num sentido claramente interdisciplinar e sustentado no longo prazo.
No sistema democrático, o que a política pode levar em conta, na melhor das hipóteses, instala-se no curto e médio prazos. O tempo democrático está ancorado na escassa duração dos mandatos dos representantes políticos. A legitimidade dos governos se constrói numa vontade cidadã de curto prazo. Pois bem, a mudança climática obriga a levar em conta questões que se instalam num registro de longo prazo, mas que devem ser tratadas com a mesma urgência que as habituais questões de curto prazo, como a fome, a miséria e os terremotos.
A partir da emergência da mudança climática, os seres humanos são confrontados com uma necessidade para a qual não estão preparados. A sociedade moderna os habituou a nivelar tudo num hedonismo materialista “curto-prazista”. A percepção do tempo da vida do individuo é o filtro que o sistema político usa para operar com a realidade. Mas a mudança climática corrói esse filtro. É claro que os atuais agentes e categorias que definem hoje a política já estão envolvidos, de uma forma ou outra, no tema da mudança climática. Mas o que aqui se afirma é que as ciências sociais devem começar uma profunda revisão de seus paradigmas se quiserem operar de forma eficiente e produtiva com a mudança climática, transformando suas ameaças civilizatórias em oportunidade de transformação positiva, material e espiritual.
A intencionalidade e consequências no longo prazo foram retiradas do horizonte do presente pela modernidade. A crescente especialização disciplinar é uma prova indireta disso. De uma perspectiva disciplinar ou sub-disciplinar, somem tanto a complexidade como o longo prazo do horizonte da ciência. A lição da mudança climática para as ciências sociais chama a atenção para a convergência interdisciplinar das ciências sociais com as ciências da vida, assim como para a necessidade de introduzir na política a representação do longo prazo.
* Héctor Ricardo Leis é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e mestre em Ciência Política pela University of Notre Dame (USA). Atualmente, é professor associado do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina.
* Eduardo Viola é professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Tem doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Foi professor visitante das universidades de Stanford, Colorado, Notre Dame e Amsterdã e membro de vários comitês científicos nacionais e internacionais.
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