Começo por citar textualmente um excerto do editorial do jornal Haaretz de 31 de maio: “Um bando de imprudentes, irresponsáveis e pessoas sedentas pelo poder decidiu por uma ação que estava fadada a resultar em pessoas mortas e feridas. O que aconteceu foi um crime contra Israel. Nenhuma pessoa sensata em Israel ou no exterior vai comprar a coleção de mentiras e pretextos com os quais os responsáveis estão tentando justificar-se”.
Fica evidente que esse jornal está condenando o desempenho dos executores da ação e não a ação em si, tentando limitar as responsabilidades aos que diretamente ordenaram o ataque. Contudo, como o primeiro-ministro Benjamin Netanyhau e o chanceler Avigdor Lieberman endossaram o assalto à chamada “Flotilha da Liberdade”, a coleção de mentiras e pretextos se estende ao governo de Israel.
O embaixador de Israel no Brasil, Giora Becher, em seu artigo “Soldados corriam perigo de vida; reação foi de autodefesa”, publicado na Folha de S. Paulo de 1º de junho (acesso somente para assinantes), subscreve, sem tirar nem pôr, a coleção.
Diz o senhor Becher que “soldados da marinha israelense embarcaram em uma frota de seis navios que tentavam violar o bloqueio marítimo em Gaza”. Embarcar em navios se embarca pelo portaló e não descendo de cordas de helicóptero ou a partir de velozes barcaças de assédio. Isso é invasão, é assalto militar. Depois, a flotilha estava em águas internacionais e o bloqueio marítimo unilateral, à luz do direito de navegação, máxime pacífico, é absolutamente ilegal.
Afirma mais o embaixador que “militantes a bordo do Marmara Mavi atacaram os soldados com armamentos como pistolas, facas e paus”. As primeiras declarações dos participantes da flotilha eram de que, em absoluto, não estavam armados. E que os marinheiros israelenses chegaram atirando. A cineasta brasileira Iara Lee, que estava a bordo do navio, em entrevista à própria Folha, declarou que “no meio da noite, em águas internacionais, os israelenses chegaram e começaram a atacar de maneira indiscriminada. Foi uma coisa de surpresa, de repente. Eu esperava que eles atirassem nas pernas ou para o alto, só para aterrorizar as pessoas, mas eles foram atacando direto, alguns foram atingidos na cabeça”. Cenas filmadas no convés do barco turco que estão rodando o mundo, mas são quase invisíveis nas redes norte-norte-americanas, não permitem qualquer dúvida sobre o que aconteceu. Comandos vestidos de preto, em trajes à prova de bala, armados até os dentes, abordaram o comboio a partir de
barcos infláveis de alta velocidade, detonaram granadas de efeito moral e gás lacrimogêneo e atiraram a esmo, munição real, contra tudo o que viam, e um helicóptero militar sobrevoava os barcos. A certa altura, ouve-se o comandante turco do Marmara dizer, em inglês: “Ninguém tente qualquer resistência. Estão armados com munição [real]”.
Era madrugada, estava escuro e grande parte dos manifestantes estava dormindo. Esta afirmação violenta a lógica: é possível enfrentar soldados fortemente armados e atacá-los com facas e paus? Muito provavelmente se defenderam com o que podiam, com paus e facas.
Em seguida, declara: “o ataque contra os soldados israelenses foi premeditado. As armas utilizadas foram preparadas com antecedência”. O embaixador acha mesmo que é preciso preparar com antecedência facas e paus? Dizer, em defesa dessa tese, que Huwaida Arraf, um dos organizadores da flotilha, afirmara: “Os israelenses vão ter que usar a força para nos parar”, é risível. Podemos interpretá-la como “nós vamos seguir em frente com a nossa missão. Para nos parar os israelenses vão ter que usar a força”. O mesmo se pode dizer da frase de Bulent Yildirim, o governante do IHH (Fundo de Ajuda Humanitária) e um dos organizadores da missão humanitária: “Vamos resistir, e a resistência irá vencer”. Ele não falou em resistência armada, nem mesmo a armada com paus e facas.
Nada de armas
O senhor Becher reconhece que a flotilha exercia “legítimas atividades humanitárias” mas que o grupo organizador “tem orientação antiocidental e radical e apoia redes islâmicas radicais como o Hamas e elementos da jihad global, como a Al Qaeda”. Essa é uma das mentiras da coleção de que fala o Haaretz. A bordo da frota havia gente de 38 nacionalidades e o grupo organizador é composto por várias personalidades comprovadamente ligadas historicamente a atividades humanitárias.
Acompanhe agora este raciocínio do embaixador: “O Hamas, que controla Gaza, já lançou mais de 10 mil foguetes contra civis israelenses e atualmente está envolvido no contrabando de armas e suprimentos militares na região, por terra e mar, a fim de fortalecer suas posições e continuar seus ataques contra Israel”. Sendo o Hamas isso tudo, então Israel tem o direito de agredir uma flotilha de navios civis, com carga de materiais não militares – comprovada pelos próprios israelenses no porto de Ashdod para onde foram levadas as embarcações – e assassinar quem se opuser a sua criminosa ação, ainda que seja com paus e facas.
Diz mais o senhor Becher que “a frota recusou repetidas ofertas de Israel para que os suprimentos fossem entregues no porto de Ashdod e transferidos por passagens terrestres existentes, em conformidade com os procedimentos estabelecidos”. Esses procedimentos são estabelecidos unilateralmente por Israel, que deixa passar o que quer. Agora mesmo, com os barcos sequestrados ancorados no porto de Ashdod, as autoridades israelenses retiveram cimento e tubos hidráulicos. E essas mesmas autoridades confessaram que não havia armas a bordo. Por que então a flotilha haveria de entregar os bens a Israel e não diretamente às autoridades constituídas de Gaza? Era e é uma opção legítima dos organizadores da Flotilha da Liberdade.
Falácia
Enfiar o caso do soldado Gilad Shalit na argumentação, senhor Becher, é uma falácia e uma tentativa de comover o leitor desavisado. O caso Shalit tem a ver com uma eventual troca de prisioneiros a ser tratada pelas partes e até com a intervenção da Cruz Vermelha e nada com o caso em questão.
À coleção de mentiras e pretextos de que fala o Haaretz, o embaixador acrescenta esta enormidade que destaco: “Ao ficar claro que a frota tinha a intenção de violar o bloqueio, os soldados israelenses, que não empunhavam armas, embarcaram nos navios e os redirecionaram para Ashdod”. Na própria imprensa israelense, as críticas se multiplicam contra a “desastrada interceptação militar” e uma das questões centrais levantadas pela mídia é: “Por que Israel enviou um comando de elite, treinado para situações de guerra, para lidar com ativistas?”. O senhor já imaginou um comando militar de elite que não porta armas letais? O senhor acredita mesmo que ?os soldados israelenses corriam perigo de vida e agiram em autodefesa porque foram atacados com tacos, facas, machados e objetos pesados?”.
Assim como ocorreu com o Relatório Gladstone sobre os crimes de guerra em Gaza, com o relatório da Anistia Internacional sobre a crise humanitária que assola o povo palestino em Gaza, a verdade virá à tona. E com ela, desta vez, as consequências que os lutadores por uma paz justa e negociada, os partidários da justiça e dos direitos humanos, os defensores do direito internacional, sejam Nações Unidas, governos, instituições multilaterais, esperam ver acontecer.
*Max Altman é membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT. Artigo publicado no portal JusBrasil.
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