Franz Paul Stangl, conhecido criminoso nazista que havia fugido para o Brasil após o fim da Segunda Guerra, foi o responsável pela montagem do sistema de segurança interna da Volkswagen, usado pela multinacional para vigiar e monitorar os funcionários da fábrica de São Bernardo do Campo durante o período da ditadura militar. A revelação está no relatório final da CNV (Comissão Nacional da Verdade), entregue nesta quarta-feira (10/12) à presidente Dilma Rousseff após mais de dois anos de investigação.
No capítulo dedicado à repressão aos operários, intitulado ‘Violações de direitos humanos dos trabalhadores’, a CNV escreve que Stangl, preso no Brasil em 1967 e extraditado para a Alemanha, foi o “funcionário da Volkswagen do Brasil responsável pela montagem do setor de vigilância e monitoramento” da unidade do ABC paulista. O aparato acompanhava de perto o dia a dia da fábrica e, especialmente atento às atividades sindicalistas consideradas “subversivas”, estava em constante contato com órgãos da repressão do governo brasileiro na ditadura.
[Em reprodução do livro-reportagem 'Into that darkness', de Gitta Sereny, Stangl aparece posando para fotógrafo em Düsseldorf]
Procurada por Opera Mundi, a assessoria de imprensa da multinacional alemã respondeu ao conteúdo do relatório da CNV. “A Volkswagen investigará qualquer indicação de uma eventual participação de funcionários no fornecimento de informações ao regime militar no País. A Volkswagen é reconhecida como um modelo por tratar seriamente a sua história corporativa. A empresa irá lidar com este assunto da mesma forma.” Neste ano, como revelado por Opera Mundi, a sede alemã da empresa já havia sido questionada por acionistas quanto ao papel exercido na ditadura militar. Em resposta aos questionamentos, a Volkswagen disse que iria esclarecer sua relação com o governo de exceção.
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“Existe uma profusão de documentos que comprovam a cooperação da empresa [Volkswgen do Brasil] com órgãos policiais de segurança do Dops”, afirma o texto final da CNV. Uma das provas citadas pela comissão é um relatório enviado ao Dops por este setor de segurança interna da multinacional relatando a atividade sindical. O documento, encontrado nos arquivos da polícia política paulista, apresenta “um resumo” informativo, comunicando, por exemplo, a realização de um comício na portaria da Volkswagen, em 26 de março de 1980 — mais de dez anos depois de Stangl ter sido capturado no Brasil.
No documento, o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva alertava os próprios metalúrgicos sobre o monitoramento ao qual estavam sujeitos na montadora alemã. “Dentro da Volks, a segurança fica de olho em vocês através de um circuito de televisão. Tomem cuidado, porque os tenentes do Exército que trabalham aí têm um circuito fechado de televisão onde conseguem ver vocês dentro da sessão”, dizia o futuro presidente da República no comício sindical.
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A CNV, após as investigações, apurou que há evidências de um “padrão de monitoramento, controle e repressão fabril altamente complexo” na fábrica paulista da Volkswagen — que teria sido implantado pelo criminoso nazista. “Divisões de recursos humanos, de segurança patrimonial e outras, sob o comando do Estado, articulando-se regionalmente e compondo uma rede estatal-privada destinada a conter, disciplinar e reprimir, para obter maior rendimento no trabalho, operários e operárias”, conclui a Comissão Nacional da Verdade.
No relatório da CNV, ainda consta o depoimento de um sindicalista e ex-funcionário da Volkswagen, Lúcio Bellentani, que relata ter sido preso e torturado pela ditadura na própria fábrica da multinacional em São Bernardo do Campo. “Estava trabalhando e chegaram dois indivíduos com metralhadora, encostaram nas minhas costas, já me algemaram. Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen já começou a tortura, já comecei a apanhar ali”, conta Bellentani.
[Preso na Alemanha, Stangl, em entrevistas concedidas à historiadora Gitta Sereny, em 1971]
Mais adiante no relatório, no capítulo 'Civis que colaboraram com a ditadura', a Volkswagen do Brasil também é mencionada como apoiadora — inclusive, com aportes financeiros — de órgãos como o Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), GPMI (Grupo Permanente de Mobilização da Fiesp) e Oban (Operação Bandeirantes). “Isso constituiria uma linha de continuidade, desde o golpe, na relação de empresários com a estrutura coercitiva do regime e a perpetração de graves violações dos direitos humanos”, escreve a CNV.
Stangl, chefe de Treblinka
Austríaco de nascimento, Franz Paul Stangl foi o comandante nazista da SS responsável por chefiar os campos de extermínio de Sobibór e Treblinka, na Polônia ocupada pelo III Reich alemão. Depois do fim da Segunda Guerra, Stangl chegou a ser preso na Áustria, mas conseguiu escapar para Roma com sua família. Ali, como tantos outros oficiais católicos da SS, obteve apoio do bispo Alois Hudal no Vaticano.
Segundo o livro Nazis on the run (“nazistas em fuga”, sem edição no Brasil), do historiador austríaco Gerald Steinacher, Stangl recebeu das mãos do bispo católico um documento de viagem como “refugiado” da Cruz Vermelha [na foto abaixo, à direita]. Com o certificado, o nazista chegou a passar pela Síria antes de desembarcar no Brasil, em definitivo, em 1951. No consulado austríaco em São Paulo, o fugitivo, embora fosse criminoso mundialmente procurado, registrou-se com seu nome original e passou a viver legalmente no país, sem alterar a identidade, a partir de 1954.
A historiadora austríaca Gitta Sereny, no livro-reportagem No meio das trevas (Editora Otto Pierre, 1981), que conta a história de Stangl, diz que, embora a Volkswagen seja geralmente citada como uma das empresas que “fornecia ‘cobertura’ a fugitivos nazistas”, não há como provar que a montadora agiu de má fé ao empregar Stangl — o nazista só conseguiu o trabalho em outubro de 1959, após oito anos de uma vida modesta no Brasil, ela argumenta. Para Sereny, é mais provável que Stangl tenha sido indicado para o cargo por sua esposa Theresa, que batia ponto na Mercedes-Benz.
[Imagem do documento da Cruz Vermelha, em italiano, entregue pelo bispo Hudal de Roma a Franz Paul Stangl]
Por outro lado, a historiadora aponta que não houve movimentos, nem por parte das autoridades, nem por parte da multinacional alemã, para investigar o caso, no mínimo, suspeito. “Parece que a ‘Lista dos Procurados’ nunca foi checada pelo consulado austríaco em São Paulo, embora seu nome figurasse por lá desde 1964. E aparentemente nem uma pessoa sequer na Volkswagen procurou fazer qualquer pergunta, muito embora tanto seus colegas de trabalho quanto seus chefes pelo menos sabiam o nome de Stangl e presumivelmente liam os jornais”, afirma Gitta Sereny.
Stangl foi preso na noite de 28 de fevereiro de 1967 em uma operação do Dops comandada pelo delegado José Paulo Bonchristiano, ex-chefe da Divisão de Ordem Política do órgão. A polícia política paulista — que posteriormente usou a operação para se defender das acusações de que “só prendia comunistas” — foi informada do paradeiro do criminoso internacional por Simon Wiesenthal, conhecido “caçador de nazistas”. “Se eu fosse entregue aos judeus estava perdido”, ainda teria dito após a captura Stangl ao delegado do Dops, referindo-se ao serviço secreto de Israel, segundo reportagem de Marcelo Godoy no Estadão.
Após ser extraditado para a Alemanha, Stangl foi julgado pelo assassinato em massa de 900 mil pessoas e condenado à prisão perpétua em dezembro de 1970. No fim da vida, admitiu os crimes, mas ressalvou: “Minha consciência está limpa. Estava apenas cumprindo meu dever”. Franz Paul Stangl morreu na prisão em 28 de junho de 1971 enquanto ainda apelava da sentença.
O substituto: coronel Rudge
Quem substituiu Stangl na Volkswagen foi o coronel Adhemar Rudge, que chefiou a Divisão de Segurança Industrial e Transporte da Volkswagen a partir de junho de 1969, permanecendo na empresa até 1991, quando se aposentou. O oficial do Exército era engenheiro de formação e dominava o idioma alemão. Quatro anos após a saída de Stangl, o setor de segurança da Volks já contava com mais de 40 funcionários em 1971, recrutados na polícia e também entre os quadros das Forças Armadas.
Reprodução/Câmara Municipal de Mogi das Cruzes
Aos 88 anos, coronel Adhemar Rudge, que trabalhou na Volkswagen entre 1969 e 1991, recebe condecoração da Câmara de Mogi das Cruzes
“Nunca houve terroristas nas fábricas. Nós preveníamos, eventualmente, com alguma troca de informações com o Dops”, conta o próprio coronel Rudge, ao jornalista José Casado, de O Globo.
Documento encontrado por Opera Mundi no acervo do Dops paulista [na imagem, à esquerda], disponível no Arquivo Público do Estado de São Paulo, mostra um memorando de “comunicação interna”, em papel timbrado da Volkswagen, assinado por Adhemar Rudge.
No documento, que acabou circulando no setor de informações do Dops, o coronel comunica à empresa das atividades sindicais em andamento na região monitorada por sua equipe. Entre os destinários das informações estão a presidência da companhia, a diretoria de produção e a divisão jurídica.
No último dia 26 de junho, aos 88 anos de idade, o coronel Rudge — descendente do bandeirante Gaspar Vaz — foi recebido com honrarias na Câmara Municipal de Mogi das Cruzes, quando foi concedido a ele o título de Cidadão Mogiano. Ao longo de sua trajetória, chegou a ser diretor da Polícia Civil, membro da UNEF (Força de Emergência da ONU) e representante do “Pessoal Civil” no governo Castello Branco (1964-1967), indicado por Luiz Antonio da Gama e Silva que, futuramente, viria a ser, como ministro da Justiça, idealizador do AI-5 (Ato Institucional nº 5).