El Salvador está prestes a iniciar um segundo acordo de paz. Desta vez uma trégua entre duas violentas gangues, a Mara Salvatrucha (MS-13) e sua rival, a 18, que mergulharam o país centro-americano em um turbilhão de violência e morte desde os anos noventa.
As gangues chamadas “Maras” surgiram nos Estados Unidos, nos bairros de Los Angeles, Califórnia. Esses grupos foram formados, em sua maioria, por imigrantes salvadorenhos que chegaram ao país norte-americano fugindo da guerra civil (1980-1992), que custou 75 mil vidas e 8 mil desaparecidos.
Agência Efe
O secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, cumprimenta um dos integrantes das Maras.
Após a assinatura dos acordos de paz em 1992, o governo dos Estados Unidos deu início a uma onda de deportações de salvadorenhos. Entre os deportados, encontravam-se os primeiros integrantes da MS-13 e da 18, que passaram a recrutar jovens em bairros pobres.
Por falta de políticas de prevenção da criminalidade, as gangues se radicalizaram com o passar dos anos e, como resultado, aumentaram os crimes de roubo, extorsões, assassinatos e, recentemente, tráfico de drogas. As Maras tomaram conta de cidades inteiras.
Diante do aumento da criminalidade, o governo do presidente Mauricio Funes, da FMLN (Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional), implantou diversos planos de segurança destinados a acabar com o fenômeno das gangues, porém, longe de solucionar o problema, a violência aumentou e o conflito recrudesceu.
Em 2011, as mortes chegaram a 4.364, o que faz do país a segunda nação mais violenta do mundo, atrás apenas de Honduras.
Parecia um beco sem saída, mas, com a ajuda da Igreja Católica, os líderes das gangues rivais anunciaram no último mês de março um processo de pacificação e pedido de reinserção social para aproximadamente 30 mil membros.
Com esta trégua, o empobrecido país centro-americano conseguiu reduzir a taxa de homicídios de 12 mortes por dia para cinco.
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O OperaMundi teve acesso à prisão de Quezaltepeque e entrevistou Víctor García, conhecido como El Duck, um dos líderes da gangue 18, que contou sobre a trégua e seus efeitos.
El Duck entrou para o grupo aos 17 anos, em Los Angeles. Deu início então à sua trajetória de violência, que o levou a entrar e sair com frequência das penitenciárias norte-americanas, até que foi deportado para sua nação de origem.
Em 2007, ele foi condenado a 28 anos de prisão por vários crimes, depois de cinco anos detido no sistema penal de El Salvador. Agora, ele resume e reflete sobre os seus anos na gangue e no que implica estar à margem da lei.
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Opera Mundi – Como surgiu o acordo de trégua entre as duas gangues, como deixaram de lado sua rivalidade?
Víctor García – Surgiu no momento em que os líderes das gangues estavam detidos na prisão de segurança máxima em Zacatecoluca. Nós tínhamos feito algumas tentativas de criar um diálogo, um espaço tanto com a sociedade como com o governo, para ver se poderíamos mudar a nossa situação, especialmente a atitude repressiva da polícia e das forças de segurança do país. Nós vimos que precisávamos fazer algo diferente do que vinha acontecendo até o momento, tudo tinha falhado.
OM – O que falhou?
VG – As tentativas de reduzir as políticas repressivas do governo, a repressão e os maus tratos nas prisões, os ataques em massa aos companheiros, entravam nas casas sem mandados de prisão, praticamente uma caça livre aos membros das gangues, e nós vimos que se não fizéssemos alguma coisa rápido, a situação nunca mudaria e ficaria ainda pior.
OM – Mas os regimes anteriores de direita também tinham políticas repressivas de “mano dura”. Então, qual é a diferença com o presidente Funes?
VG – Não diremos a FMLN ou a ARENA (Aliança Republicana Nacionalista, que governou o país de 1989-2009), porque não vemos assim, o governo é o governo, não temos nenhuma inclinação política. No período de Funes, chegamos ao ápice de tudo o que vinha acontecendo com o “Plano Super Mano Dura”. Eu não poderia dizer que agora estamos sob mais tensão, porque a repressão sempre foi a mesma, a diferença é que nós chegamos agora a um ponto em que percebemos que a única saída era que nós mesmos, as gangues MS e 18, tomássemos a decisão de mudar a nossa situação, por isso a minha resposta concreta é de que sempre vimos a repressão da mesma forma.
Agência Efe
Armamento entregue pelas gangues salvadorenhas às autoridades do governo.
OM – Mas você sentiu mais violência nas comunidades com a maior presença militar e ação policial?
VG – Sim, sentíamos a pressão, sentíamos a presença do exército.
OM – E em algum momento acharam que podiam perder a guerra contra o governo?
VG – Em geral, toda ação gera uma reação e violência gera violência. Foram os extremos da violência que nos levaram a repensar, talvez não o medo de sermos exterminados como gangues, mas em alcançar uma condição social mais digna de seres humanos, já que antes éramos vistos como um nada, espancados, insultados, discriminados. Então, foram essas as coisas que nos estimularam a assumir a via pacífica.
OM – Quando começaram com todo o processo de trégua, diziam: “Nós causamos muitas mortes”. Como é este sentimento de pertencer a uma gangue e de ter provocado tantas mortes?
VG – Tomamos decisões, erramos, evoluímos para o que somos. Não tem mais graça, não nos causa satisfação ver os nossos colegas serem mortos, ver os nossos colegas serem espancados, ver os nossos colegas prejudicarem outras pessoas e serem presos por muitos anos, condenados a viver a vida que vivemos atrás das grades. Por isso é que dizemos isso, que, de todas as mortes que acontecem todos os dias em El Salvador, somos responsáveis pela maioria.
OM – Como foi esse primeiro passo, de quebrar o gelo para se aproximar do rival, até então um inimigo mortal?
VG – Estávamos na prisão de Zacatecoluca, onde havia integrantes da MS-13, da 18 e da população civil que não pertence a gangues. Portanto, havia momentos em que cruzávamos com colegas de outra gangue, falávamos sobre o assunto, falávamos sobre as situações que estavam se passando e como poderíamos mudá-las. Sempre analisamos tudo isso, então, chegamos à conclusão de que a violência nunca chegaria ao fim se nós mesmos não déssemos o primeiro passo. Começamos a desenvolver discussões nesse sentido e foi assim que tudo começou.
OM -Por que escolheram a Igreja Católica como mediadora?
VG – Não é que nós procuramos a Igreja, nem Raúl Mijango [mediador], mas nós começamos a falar entre nós mesmos e isso veio a se concretizar. Já não era apenas uma ideia, era praticamente um plano do que faríamos. Desde o início, deixamos de lado as nossas diferenças, vimos que estávamos em uma situação difícil, então, chegamos ao acordo de fazer uma trégua para que entre nós mesmos começasse um entendimento, que de Zacatecoluca poderia estender-se às outras prisões e às ruas, graças a Deus foi assim que aconteceu. Então, pedimos ajuda à Igreja e ela concordou em participar.
Wikicommons
Tatuagem com o símbolo da gangue MS-13.
OM – No caso da gangue 18, como foi que os outros membros receberam a notícia da trégua?
VG – Graças a Deus a receberam bem. Tudo foi um processo, porque primeiro chegamos a um entendimento entre nós e, a partir daí, começamos a divulgá-lo e compartilhá-lo com os colegas de outros locais, que também têm uma posição influente dentro da gangue, e o viram com bons olhos. Pouco a pouco, fizemos o mesmo com os outros até o ponto de conseguir apoio para o projeto, quando chegamos e tomamos as decisões. Saímos de Zacatecoluca, chegamos aqui e falamos com nossos companheiros, explicamos o que estávamos fazendo.
OM – Como funciona a gangue em um nível regional? Por que a trégua não se estende até Honduras ou Guatemala, que também são países que até certo ponto encontram-se nas mesmas condições que El Salvador?
VG – Nós tomamos essa iniciativa aqui, em El Salvador. Nos identificamos com nossos “manos” da 18 na Guatemala, Honduras, México, inclusive nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar onde haja “manos” da 18. Mas em El Salvador estamos vivendo circunstâncias diferentes das que nossos colegas da mesma gangue estão vivendo em outros países, onde as circunstâncias e a situação que estamos vivendo contribuíram para que isso nascesse entre nós. Não estou dizendo que não possa acontecer em outros países, mas que talvez ainda não se tenha chegado a esse ponto, mas nós, sim, chegamos a um ponto em que vimos que não tínhamos outra alternativa se quiséssemos sair da situação em que estávamos.
OM – Houve negociações entre as gangues e o governo salvadorenho?
VG – Não, é claro que não.
OM – Os governos da Guatemala e de Honduras dizem que não vão negociar com as gangues. Acredita que as políticas repressivas nesses dois países levem os seus colegas a pensar que é tempo de mudar e repetir o que estão fazendo aqui em El Salvador?
VG – Não foi apenas o fator da repressão que nos levou a tomar esta decisão, mas o acúmulo de todas as coisas que estavam acontecendo e que praticamente produziram a ideia de que não teríamos alternativa, exceto esta trégua.
Wikicommons
OM – Pode-se, então, descartar a ideia de uma trégua em nível regional?
VG – Nós não vamos ordenar aos colegas: “vejam, nós já fizemos em El Salvador, agora é a sua vez”, como um efeito dominó. Não estamos dizendo que devem fazer isso, eles têm seu próprio ambiente onde estão vivendo suas próprias situações e farão o que eles decidirem. Mas se fizerem isso, sabem que contam com o nosso apoio e os ajudaremos em tudo o que estiver ao nosso alcance, porque acreditamos que isso seria algo positivo para eles também.
OM – Recentemente, El Salvador recebeu o embaixador da OEA para assuntos de segurança, Adam Blackwell. Quais foram as conclusões e quais conversas vocês tiveram?
VG – O projeto em elaboração, a trégua, e o processo de pacificação entre as gangues no país. Pediu-se também a sua ajuda por ser uma entidade, para que nos ajudem e colaborem para que os setores que ainda estão um pouco céticos, que não querem acreditar e ainda não estão convencidos de que isto é real, também possam aderir a esta causa e nos ajudar de alguma forma para que ela se desenvolva.
OM – Que tipo de garantias vocês pedem com a trégua?
VG – Elas são simples; o que pedimos realmente é que nos tratem como seres humanos, que parem de nos excluir de certos direitos, o que nós precisamos é sermos vistos como seres humanos normais, como qualquer outro cidadão deste lugar, e que não sejamos excluídos por fazer parte de gangues ou por ter tatuagens. Também que cessem a atitude repressiva contra nós.
OM – Como tem sido o acesso às demandas que vocês fazem?
VG – Tivemos pessoas desaparecidas lá fora, têm matado gente dentro das prisões, invadem as casas sem mandado de busca. Ao procurar trabalho na maioria dos lugares, existem pessoas que têm bom coração e oferecem trabalho para integrantes de gangues, mas a maior parte dos empresários desconfia deles, não lhes dão trabalhos ou, se dão, não pagam o suficiente. Até agora, não temos visto seriedade por parte dos projetos e programas elaborados para a reinserção e readaptação, sabemos que foram apenas uma encenação, jamais foi feito algo sério e concreto por nós.
OM – Parece que há uma contradição. O governo diz que quer formar um acordo de unidade nacional, mas a repressão contra vocês segue nas ruas. Como veem isso?
VG – Isso nós compreendemos. Estão querendo apoiar a trégua. Estão querendo nos dar a oportunidade e o espaço, mas também entendemos que também existe uma responsabilidade, e a responsabilidade do presidente é manter a ordem. Se nossos colegas andam fazendo coisas ruins em alguns lugares, o presidente terá de agir, a única coisa que pedimos é que os procedimentos e os métodos usados para combater a delinquência e o crime respeitem a lei.
OM – Nestes casos isolados de colegas que continuam fazendo “coisas ruins”, como dizer a eles que não podem ser controlados pelos líderes que não estão presos?
VG – Vou responder em nome da gangue 18. Desde que saímos de Zacatecoluca, temos trabalhado, temos tido dificuldades e as superamos, tivemos gente que não quis se envolver, não quis assimilar isso, mas estamos avançando. Se eu te dissesse que 100% dos integrantes da 18 estão nisso e que vão agir e que suas ações vão refletir lá fora, estaria não só mentindo para você, mas também para mim mesmo e para meus companheiros.
OM – E como você recebe a rejeição de grande parte da população à trégua?
VG – Sabemos que pusemos essa desconfiança na cabeça dessas pessoas, incluindo essa atitude de rejeição contra nós, porque admitimos que temos causado muitos prejuízos, por isso que, desde que começamos este processo, nós, com sinceridade, pedimos perdão ao povo salvadorenho. Sabemos que teremos um trabalho à frente para demonstrar nossas intenções e nosso outro lado, que é possível se nos derem a oportunidade de mudar tudo o que fizemos.
OM – Vocês descartam uma anistia, que os perdoe ou retire as penas pelos crimes cometidos?
VG – No que compete ao governo, somente pedimos que a lei seja aplicada da forma como está escrita.
OM – E como a questão das extorsões pode ser eliminada?
VG – Chegamos à conclusão de que existem maneiras de acabar com as extorsões. Vamos deixar de praticá-las, mas faremos isso em seu devido tempo, porque agora não existem as condições nem o momento para poder fazer isso.