O primeiro presidente da Argentina após o regime militar, Raúl Alfonsín, governou num período de redemocratização e fortalecimento das relações com o Brasil. Mas nem todos acham que o mérito foi propriamente dele.
A começar pela afirmação de que Alfonsín e José Sarney (1985-1990) foram responsáveis por uma inédita aproximação entre os dois países. Para o argentino Osvaldo Coggiola, historiador e professor da USP (Universidade de São Paulo) e do Mackenzie, essa tese não é consistente, pois os documentos firmados naquele período, como a Declaração de Foz de Iguaçu, precursora da criação do Mercosul, faziam parte de um processo diplomático que viria a se concretizar de qualquer maneira.
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“A afirmação de que os dois presidentes fizeram uma aproximação entre os países é banal”, avalia Coggiola. Segundo ele, os acordos tarifários firmados na época buscavam fortalecer meramente a relação comercial, “visando ao benefício das empresas”.
Já o cientista político e historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira avalia que Alfonsín foi essencial para estreitar as relações; que ele e Sarney foram responsáveis por desenvolver um processo gradual, constante e importante de aproximação entre os dois países.
“Mesmo antes de 1945, existiram várias tentativas de aproximar o Brasil e a Argentina que não deram certo, e o Alfonsín foi quem conseguiu. Ele e Sarney deflagraram essa importante aproximação. Foi um grande estadista”, afirmou. Moniz Bandeira se refere, por exemplo, ao Tratado do ABC, de 1915, a uma tentativa de união aduaneira em 1941, à Alalc (Associação de Livre Comércio da América Latina) e ao MCCA (Mercado Comum Centro-Americano), ambos em 1960, entre outras.
Coggiola, autor do livro Governos Militares na América Latina, entre outras obras, reconhece que os tratados assinados na época foram importantes, principalmente por darem origem ao Mercosul, mas defende que outros acordos tão importantes já haviam sido firmados anteriormente, como o Pacto ABC, desdobramento do Tratado do ABC firmado entre Brasil, Argentina e Chile.
Tensões
Na época anterior ao governo de Alfonsín, alguns militares argentinos diziam que o Brasil poderia querer ocupar a província argentina de Misiones, no nordeste do país, fronteira com o Paraguai, enquanto os brasileiros temiam uma invasão pelo Rio Grande do Sul. Havia também uma preocupação recíproca em relação aos programas nucleares e reclamações da Argentina sobre a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Estes problemas terminaram após visitas aos projetos nucleares dos dois países e a ida de Alfonsín a Itaipu.
Moniz Bandeira, autor do livro Argentina-Brasil: O Processo de Integração da América Latina, defende que, por mais que as relações diplomáticas entre Brasil e Argentina estivessem desgastadas durante a década de 1980, seria improvável chegar às vias de fato. “O conflito bélico entre os dois países não aconteceria. São economias fortes da América Latina e países vizinhos que devem ter uma relação forte e estreita”.
Neste ponto, Coggiola concorda. Brasil e Argentina, diz ele, nunca estiveram perto de um conflito armado, pois nunca houve mobilização de tropas. “O que havia era uma campanha ideológica que tinha como objetivo fortalecer os exércitos dos países”.
Ditadura
Sobre o papel de Alfonsín na retomada da democracia, Coggiola faz a ressalva de que o ex-presidente não fez efetivamente parte da oposição ao regime militar. “Antes da Guerra das Malvinas, só quando o regime já estava sem apoio e a redemocratização estava legitimada, inclusive pelos Estados Unidos, Alfonsín se posicionou contra o fim da ditadura”.
Na avaliação do historiador, a imagem do regime militar já estava desgastada e o conflito nas Malvinas, em 1982, contribuiu para aumentar a pressão pela abertura democrática, que já existia. Foi nesse contexto que o ex-presidente apareceu como a figura política da redemocratização.
Coggiola lembra também que Alfonsín era membro da UCR (União Cívica Radical), partido que, em sua maioria, apoiou o golpe militar. E exercia um papel de ponte entre os civis e os militares, tendo encontros freqüentes com o ministro do Interior, Jorge Arguindegui. “A ligação de Alfonsín e Arguindegui era uma janela que o regime queria manter aberta com os partidos políticos enquanto o regime fazia uma grande opressão”.
Políticos argentinos, no entanto, disseram que Alfonsín teve um papel fundamental na redemocratização. Um deles foi o atual subsecretário geral da Presidência, Gustavo López, da União Cívica Radical. “É o pai refundador da democracia argentina. Em 1983, não só estava em disputa uma eleição, mas um modelo de democracia que o país adotaria: se seria construído sobre a impunidade ou sobre o julgamento dos crimes berrantes cometidos pela ditadura”, afirmou.
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