Mark E. Smith, sinônimo de The Fall, subiu ao palco do The Coronet Theatre, um cinema decadente no bairro mal-amado de Elephant & Castle, sul de Londres. Casa lotada. Ao menos 2.000 pessoas saúdam o herói do pós-punk britânico em troca de uma hora e meia de grunhidos entorpecidos.
“We are The Fall!”, grita Smith, nas primeiras e poucas palavras compreensíveis. A poesia truncada do herói responde ao quadradismo do norte industrial do Reino Unido. A amarração complexa de guitarra e baixo, repetitiva e incessante, oferece a hipnose. Prato cheio para a roda de pogo manter o show aceso até o final.
Roberto Almeida
“Se estivermos eu e sua vó no palco tocando bongô, é o The Fall”, diz Mark E. Smith, que mantém vivo o pós-punk britânico
Cambaleante, ele só mantém a sobriedade no guarda-roupas. Jaqueta lisa de couro, camisa branca, calça preta e sapato. Smith caminha pelo palco, mexe nos amplificadores no meio das músicas, usa um, dois microfones, que bate nos pratos da bateria para depois atirar por cima da barricada em direção a um fã estuporado.
O público, bem mais grisalho que imberbe e usando camisetas com a estampa “Mark E. Smith Rules OK”, bate cabeça e persegue os passos dele, mesmo sem decifrar boa parte de seu fraseado. Desde 1976, ano em que fundou o grupo, o líder do The Fall simboliza o anti-mainstream no rechaço ao assédio das grandes gravadoras, declinando convites para não cair nas armadilhas do mercado.
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O resultado, 29 álbuns de estúdio depois, é uma exploração musical sólida e independente, paralela à cena punk britânica. São raríssimas as músicas do grupo com uma letra simples e direta. O líder do The Fall relata em sua autobiografia pancada Renegade, the lives and tales of Mark E Smith (Amazon.co.uk, 7,69 libras) que sempre escreveu a esmo, em pubs, inspirado pelas viagens em ácido e com a colaboração da anfetamina. Rabisca em guardanapos molhados de cerveja e cidra obedecendo seu fluxo de consciência. Maconha, para ele, é droga de hippie.
Smith sempre quis acelerar, com um senso de humor enviesado, sua relação contraditória com o próprio país, e não pegar em um microfone para “falar bobagens revolucionárias sem substância, igual ao Joe Strummer”, líder do The Clash. Acabou com uma obra que se divide entre o amor pela própria terra e o ódio pelo imperialismo e pela repressão sistemática da cultura britânica.
Orgulho e fetiche
A cultura do pub e o “orgulho nortista” da banda, que foi formada em Prestwich, distrito de Bury, no subúrbio de Manchester, é evidente nas letras e nos clipes. Em I’m not from Bury (2010), ovacionada no The Coronet Theatre, Smith tem um devaneio de grandeza e contradição em relação à cidadezinha de 60 mil habitantes. O provincianismo pode ser aconchegante e irritante ao mesmo tempo.
O melhor exemplo é Hit the North (1987), que não é parte do repertório há anos. Nela, o líder do The Fall retrata em frases soltas um norte britânico em que “computers infest the hotels” (computadores infestam os hotéis) e “cops can’t catch criminals, they talk to God” (policiais não conseguem pegar criminosos, eles falam com Deus) – uma crítica ao chefe da polícia de Manchester da época, que se dizia médium e vidente.
Durante os shows, a expectativa de ouvir o “quase sucesso” Hit the North permanece intacta. Agora, adivinhar o setlist pinçado entre 29 álbums e cerca de 300 músicas é tarefa para os fãs ardorosos, que nunca concordam sobre qual a melhor fase da banda.
Curtir The Fall é um grande fetiche, uma confraria para poucos. A última coletânea, com irônicos 39 “golden greats”, chamou-se 50.000 fans can’t be wrong (2004), um tiro sarcástico na coletânea 50 million fans can’t be wrong, de Elvis Presley.
Esses 50.000 são sorrateiros, falam em “manter a banda em segredo” para não cair nas garras do pop, e idolatram o principal defensor de Smith, o mais famoso DJ de rock do Reino Unido, John Peel, morto em 2004. Foi Peelie, assim apelidado carinhosamente, quem colocou a banda pela primeira vez na TV, para o país todo ver.
À exceção de John Peel, porém, Mark E. Smith colecionou uma relação conflituosa com jornalistas de música. Segundo ele, ninguém entendeu seu som, os ataques à cultura pop ou a freqüente mudança de membros da banda. Não por menos, o título de sua autobiografia, citada acima, é “Renegado”. Um filho da classe média britânica que escapou ao rótulo e partiu para a polêmica.
O melhor álbum para retratar esse descontentamento é Hex Enduction Hour (1982). Duas músicas trazem a essência anti-mainstream. A primeira é Hip Priest, que depois fez parte da trilha sonora de O Silêncio dos Inocentes. Nela, Smith trata os críticos como “padres hipsters”, ditadores de regras absurdas.
The Classical, no mesmo álbum, rasga o pop britânico com frases soltas, agressivas e polêmicas. Uma delas ainda hoje causa discussões sobre racismo. Smith espirra logo no início o verso “Where are the obligatory niggers?”, em referência ao uso “obrigatório” de negros para criar uma falsa aparência de diversidade em meios culturais britânicos. Algo como apontar o dedo para a reprodução acrítica das relações de poder com a doméstica negra nas telenovelas brasileiras.
De volta ao palco
Os shows do The Fall normalmente revisitam uma ou duas músicas das décadas de 1970 e 1980. Desta vez Psykick Dance Hall (1979) e Mr. Pharmacist (1986) alimentaram a catarse no The Coronet. E só. Ersatz GB, álbum recém-lançado, foi ao palco quase por completo, entre produções recentes pós-2000. O Opera Mundi gravou um trecho de Nate Will Not Return no The Coronet, com Smith de um lado para o outro brincando com os amplificadores. Veja no vídeo abaixo.
Nostalgia não é com ele, que já demitiu tantos componentes da banda que perdeu a conta. “Se estivermos eu e sua vó no palco tocando bongô, é o The Fall”, disse ele há anos, quando perguntado sobre a frágil coesão da banda.
Da mesma forma que admitia a esmo novos membros que pediam para tocar no grupo, entre eles diversos fãs, Smith dispensava-os de uma hora para outra. Ele já deixou guitarristas e baixistas na estrada em turnês pelos Estados Unidos e brigou com um baterista durante show em Nova York, na década de 1990.
Uma divertida reportagem do jornal The Guardian, publicada em 2006, tentou encontrar todos os ex-membros do The Fall para saber o que estavam fazendo da vida. Não conseguiu. As faíscas são tão cortantes que um dos discos recentes, Reformation Post TLC (2007), é dedicado a ex-membros da banda. “TLC”, de acordo com Smith, significa “traitors, liars and cunts”, ou “traidores, mentirosos e babacas”.
Por outro lado, o líder do Fall casou-se duas vezes com mulheres que fizeram ou ainda fazem parte do grupo. A norte-americana Brix Smith, hoje dona da Start, uma grife badalada em Shoreditch, área descolada de Londres, delineou os rumos da banda na década de 1980 – fase considerada mais pop. Hoje é a romena Eleni Poulou, que administra os teclados e, no palco, quem zela pela integridade física de Smith. Durante o show, ela jogou olhares preocupados para que ele não caísse do palco ao atirar o microfone para os fãs.
Retorno ao Brasil?
Ersatz GB é, sem dúvida, muito mais agressivo que os álbuns do The Fall da década de 1980, sem dúvida mais palatáveis e mais indicados para quem quer conhecer a banda. De qualquer forma, essa era exatamente a intenção de Smith, que escreveu na contracapa: “Havia mixes mais claros das músicas, mas clareza não se encaixa em Ersatz GB”.
Lançado pela Cherry Red Records, selo independente britânico, o disco foi muito bem no palco do The Coronet. A banda certamente não se encaixaria em festivais ou casas para grande público. A batida contínua e hipnótica é preponderante, o vocal de Smith funciona como instrumento, acelerando o percurso com barreiras.
Sua turnê, porém, deve ficar restrita à Europa e, talvez, aos Estados Unidos. O The Fall dificilmente voltará para o Brasil. Em 2011, passou raspando. Smith cancelou de última hora os shows que faria em Recife e Salvador.
Roberto Almeida
“Quero ir embora daqui e rápido”, disse Smith, que não tem boas lembranças do Brasil
Em entrevista à revista Wire, em 1996, Smith, que já visitara o Brasil uma vez, explicou sua aversão ao país. “Eu não iria [para o Brasil] de novo. Quebrou meu coração. Você está tomando café da manhã no hotel, bacon e ovos. Você olha pela janela e há cinco crianças, negras, de cores diferentes, uma tem um braço só, outra uma perna só, e estão todas chorando, olhando você comer seu ovo com bacon. Eu disse ao tour manager: ‘quero ir embora daqui e rápido”, disse ele.
O pior, para Smith, ainda estava por vir. “O mais estranho foi no avião, com uns tipos meio hippies em roupas de veludo dizendo ‘Eu adoro o Brasil porque por cinco libras…’. Todos esses tipos hippies tinham ido ao Brasil ajudar as pessoas nas favelas. É como a Índia, mesma coisa: por cinco libras e cinqüenta pence, você consegue morar com um cara, comer sua mulher, conseguir todas as drogas que quiser e ainda achar que está ajudando. É imperialismo, mas você se sente bem porque está ajudando”.
Com um exemplo desses, como é possível sair ileso e ainda sentir simpatia por seus conterrâneos? Jogando frustração e fúria em uma agressão à cultura pop britânica por quase 40 anos continua uma excelente opção.
Serviço:
The Fall
Ersatz GB (2011)
Cherry Red Records
Na amazon.co.uk:
10,27 libras em CD
23,54 libras em vinil
Na cherryred.co.uk:
9,99 libras em CD
17,99 libras em vinil