Atualizada às 14h46
Exatos 39 anos após o golpe de Estado que, em 24 de março de 1976, deu início ao regime de exceção que se estenderia até 1983 na Argentina, há no país 563 pessoas condenadas por delitos de lesa humanidade cometidos durante a ditadura militar. Depois de pressionar pela investigação ampla da responsabilidade das forças de repressão, movimentos ligados aos direitos humanos cobram do poder público algo a mais: elucidar a participação dos empresários nos crimes da ditadura.
Segundo um levantamento feito pelo Ministério Público, neste mês, há 1.136 indivíduos processados por delitos ligados ao regime de exceção. Dados do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais) indicam que 312 dos atuais imputados são civis; e 17 deles, empresários. A resistência do sistema argentino em julgar e responsabilizar representantes dos grandes conglomerados econômicos contrasta com a celeridade e a prontidão com as quais o tema da justiça de transição foi enfrentada.
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Desde que foram derrubadas na Justiça as chamadas “leis da impunidade”, que interditavam a responsabilização criminal dos agentes da ditadura, a Argentina protagonizou um processo singular no mundo, servindo de exmplo a muitos países que viveram regimes ditatoriais: conseguiu julgar em tribunais civis em seu próprio território militares pela condução de um regime que sequestrou bebês, torturou e desapareceu com opositores.
Genocídio e plano econômico
Para Adriana Taboada, da Comissão do Processo de Campo de Maio, é preciso “averiguar como a articulação civil possibilitou ações militares, muitas vezes em cumplicidade, outras na organização da repressão”. Ela defende o uso do termo “ditadura cívico-militar” para definir o regime que controlou o Estado na Argentina entre 1976 e 1983. “Os militares só puderam avançar porque havia outros não militares que os acompanhavam. Um golpe exige apoio logístico, financeiro e preparação da população , o que envolve a imprensa, a Igreja e membros do poder econômico.”
Taboada crê ser necessário analisar o plano econômico da ditadura para entender o grau de envolvimento de empresários no golpe de 1976. “Se compramos a história de que os militares dão o golpe porque precisavam combater as organizações armadas, estamos comprando uma história falsa. Os militares chegaram ao poder para outra coisa. Sem o genocídio — porque aqui houve um golpe e um genocídio — não seria possível implementar as mudanças na economia”.
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Segundo um relatório de 2013 da CNV (Comissão Nacional de Valores), órgão estatístico do governo argentino, o plano econômico desenhado e executado pela ditadura aprofundou a financeirização, desindustrializou o país, aumentou a precariedade no trabalho, incentivou a desocupação estrutural e ajudou a concentrar capital em mãos de poucos atores econômicos, além de promover o endividamento externo.
O documento destaca que “as Forças Armadas contaram, para seu projeto, com o apoio da grande burguesia nacional (…), das multinacionais e do capital financeiro internacional (…), além de pequenos e médios produtores rurais, da burguesia sindical, da Igreja conservadora e dos partidos tradicionais”. Para a CNV, o projeto “constituiu para as elites dominantes uma imperdível oportunidade para enriquecer e ao mesmo tempo utilizar o Estado para eliminar a radicalização política (que resistia a esse processo).”
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Ford e Mercedes Benz
Duas multinacionais estão envolvidas hoje em processos penais por sua participação nos crimes da última ditadura, ambas na Zona de Campo de Maio. Em novembro de 2014, os promotores Miguel Ángel Blanco García Ordás e Hugo Bogetti pediram que o juiz da causa convocasse gerentes da empresa para prestar depoimento sobre o sequestro, cativeiro, tortura e homicídio de membros de funcionários da empresa durante os anos de chumbo. No entanto, o juiz considerou que não havia elementos suficientes para convocar os executivos e a causa está em discussão em instância superior.
Também há gerentes da empresa Ford processados, acusados de haver facilitado o sequestro de empregados da montadora com o fornecimento de listas de nomes, fotos e domicílios dos operários. A causa — a mais avançada até agora — se encontra parada à espera de que se conforme um tribunal que possa dar continuidade à fase oral e pública do julgamento.
Para Luz Palmás Zaldua, coordenadora da equipe memória, verdade e justiça do CELS, existe resistência por parte de operadores judiciais em analisar os fatos, dificultando a elucidação da responsabilidade empresarial em crimes de lesa humanidade.
“As Forças Armadas e de Segurança não têm vigência como poder político. Já o poder econômico e concentrado está vigente, gera pressões no poder judicial. Não é fácil avançar ou aprofundar essas investigações”, avalia a advogada. “Estamos falando de grupos econômicos concentrados, que se sentam à mesa para discutir políticas econômicas com alguns pré-candidatos às eleições deste ano”.
Revés no Judiciário
Nas últimas semanas, uma série de decisões judiciais comprovaram a dificuldade em julgar empresários. Em um pronunciamento que demorou dois anos, o juiz responsável pela causa da açucareira argentina Ledesma beneficiou o presidente da companhia, Carlos Pedro Tadeo Blaquier, e o ex-administrador da firma, Alberto Enrique Lemos, por delitos de homicídio, privação ilegítima de liberdade e torturas contra 26 vítimas.
Apesar de reconhecer que Ledesma havia emprestado camionetes utilizadas para os sequestros perpetrados por agentes da repressão, o juiz considerou que não há como provar que os altos executivos da empresa eram conscientes de que os veículos seriam usados para esses fins.
Meios de comunicação
Três casos que envolvem meios de comunicação também receberam sentenças favoráveis aos implicados neste mês. O juiz responsável pela causa Papel Prensa, decidiu não acatar o pedido dos promotores para convocar a uma audiência com o CEO e a dona do Grupo Clarín, Héctor Magnetto e Ernestina Herrera de Noble, além do proprietário do jornal La Nación, Bartolomé Mitre.
Também foram beneficiados Vicente Massot, do jornal A Nova Província, de Bahía Blanca (ao sul de Buenos Aires), imputado como coautor de homicídios de trabalhadores gráficos, e o chefe-de-redação da Editorial Atlántida, Agustín Botinelli, acusado de forjar uma entrevista com a mãe de um desaparecido.
Reprodução
Primeira página da revista argentina 'Para Ti' com a entrevista forjada e sob coerção de Thelma Jara de Cabezas
Na falsa reportagem [foto acima], publicada na revista feminina Para Ti, Thelma Jara de Cabezas dava declarações que condiziam com o discurso da ditadura — de que os pais eram responsáveis pelo envolvimento político dos filhos, que os desaparecidos estavam fora do país e muitos ameaçados por grupos de esquerda. No entanto, a mulher estava sequestrada no CCD da Esma (Escola de Mecânica da Marinha), onde era submetida a torturas e de onde saiu sob custódia e ameaças para a produção da entrevista.
Saldo positivo
Todas as decisões judiciais tomadas ao longo deste mês de março podem ser objeto de recurso e ainda serão avaliadas por instâncias superiores — o caso Ledesma chegará à Suprema Corte.
Palmás acredita que o quadro atual é parte do processo histórico argentino no julgamento de crimes de lesa humanidade. “Assim como houve avanços e retrocessos no processo de julgamento de militares, a possibilidade de julgar empresários e seu papel no terrorismo de Estado também requer um debate profundo, que sem dúvidas vai passar por muitas dificuldades”.
Ela concorda que os 17 empresários imputados hoje são apenas uma pequena fração dos envolvidos com o terrorismo de Estado da última ditadura. Entretanto, pondera que também no início do julgamento de militares eram muitos menos os acusados do que os que estavam implicados.
Taboada também concorda que, embora as últimas decisões preocupem os movimentos de direitos humanos no país, o saldo é positivo. “Nós já ganhamos. Não somente porque há condenados, mas também porque mudamos a história”. Ela celebra que a Argentina tenha podido romper com uma história de impunidade. “Talvez não sejam julgados todos os responsáveis, mas outros foram, em julgamentos transparentes, em processos que são monitorados e públicos. E há condenados. Há uma experiência diferente neste país e vamos poder transmitir isso a outras gerações”.