A trajetória das autodefesas de Michoacán, sobretudo o resgate de um de seus líderes, José Manuel Mireles, em janeiro desse ano, levantou muitas suspeitas no México. O afã da Polícia Federal em protegê-lo em janeiro levantou muitas perguntas, principalmente, se as autodefesas faziam parte de alguma estratégia de segurança federal.
“Estou convencido de que qualquer apoio por parte do governo federal ou do Exército seja uma tentativa de cooptação, baseada na situação vergonhosa de descontrole”, afirma Simón Sedillo, jornalista independente e acadêmico nos Estados Unidos e no México pelo SURCO AC (Serviços Comunitários e Redes de Conhecimentos em Oaxaca A.C.).
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Segundo explica, até o momento as autodefesas têm sido autorizadas pelas comunidades a entrar, desarmar a Polícia Municipal, deter os Templários e tirá-los de lá. “Depois, chegam Polícia Federal e Exército, que precisam mostrar a cara, que estão apoiando”, diz.
Um dos posicionamentos mais duros contra o governo do Estado de Michoacán foi a do sacerdote Dom Gregório López, do município de Apatzingán, território ocupado pelos Cavaleiros Templários.
Dom Gregório, que ultimamente reza a missa com um colete à prova de balas, disse em várias ocasiões que o governador do Estado, Fausto Vallejo, não pode cumprir com seu compromisso de acabar com o crime organizado já que os próprios Cavaleiros Templários seriam seus aliados.
A tendência de qualificar como paramilitares os movimentos de autodefesa, segundo Sedillo, deriva de um conceito de pureza adotado pela esquerda, tanto mexicana como internacional. “A esquerda burguesa quer padronizar, estabelecer o conceito de que a luta deve ser ‘pura’ e, como esse movimento não é ‘puro’, não vale nada”, ressalta. “E isso é um erro. Se criarmos esse padrão de perfeição para equilibrar todos os movimentos sociais, nenhum chega a essa perfeição.”
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Conforme analisa, as autodefesas podem ser cooptadas, “mas qual movimento no mundo de autodeterminação comunitária não sofreu uma tentativa de cooptação ou foi cooptado? Quando um movimento funciona e começa a ser contagioso, a primeira coisa que acontece é tentarem cooptá-lo. Mas isso também não é um argumento para descartá-lo”, sublinha.
Para ele, o nível de diversidade presente dentro das autodefesas é o que espanta a esquerda. “Claro que assusta pensar que eles podem ser influenciados, mas também é assombroso pensar em todas as outras possibilidades. É necessário lembrar que isso começou com os povos indígenas, com os municípios de Nurio e Cherán e agora está se estendendo até Coalcomán e Aquila, entre outros. São os movimentos indígenas em defesa de seu território que, depois, inspiraram os movimentos das comunidades mestiças. Isso começa como uma luta de bairro, de povoados, de baixo. Não se encaixa nos padrões das lutas históricas do México, sejam de operários, camponeses, indígenas, comunistas, anarquistas ou zapatistas. Parece ser de bairro e o bairro nunca foi puro nem perfeito, mas não merece ser descartado automaticamente por isso.”
“Luta de bairro”
O que fica claro é que, dentro das autodefesas, há muitas correntes. Há os que consideram positivo o apoio do governo federal na luta contra os grupos do crime organizado e os que não. Há quem confie na Polícia Federal e quem confie no Exército. Há quem tenha confiado em algum dos dois e agora não confia em ninguém.
Sedillo, que trabalhou anos com a questão das comunidades de base, acredita que as autodefesas se parecem com movimentos de bairro lutando por sua sobrevivência e que, nesse “levante”, um dos elementos principais é a falta de dogmas políticos. “Há muitos movimentos sociais no mundo que começam já com uma análise política do neoliberalismo, uma análise anticapitalista, anti-imperialista. Os zapatistas tiveram uma formação política alimentada durante doze anos de trabalho prévio ao levante de 1994”, lembra.
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“O que diferencia os movimentos de bairro é que não há tempo de criar formação política. O que gera a reação no bairro é uma ‘atrocidade’ que alimente a coragem já presente. O detonador em Michoacán foram as matanças, violências. Explodiu de imediato. O caso clássico são os motins de Los Angeles, em 1992, quando se gravaram policiais espancando um negro sem motivo. Quando os policiais não foram presos, o bairro se revoltou rapidamente. Duas gangues se uniram, queimaram o bairro, tomaram os quartéis da polícia”, recorda.
“As autodefesas têm essa característica, apesar de não ser em um contexto urbano. Em Tierra Caliente são em sua maioria grupos mestiços, alguns até de jovens deportados dos Estados Unidos, sem definição política, de povoados muito pobres, com um detonador forte. Excluir por completo a possibilidade de se auto-organizar ou de se defender é um discurso classista e privilegiado”, finaliza.
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