Lucy saiu de casa olhando para baixo e falando alto no celular, mas não distraída a ponto de trombar pelo caminho com algum policial ou oficial do exército. O assunto que ela discutia no telefone, afinal, tinha tudo a ver com a “barricada” armada na porta do prédio onde mora, o Fred Wigg Tower, em Leytonstone, periferia leste de Londres.
“Não, eu não tenho medo”, gritava ao telefone, atenta à movimentação na porta do edifício, “mas tem muita gente que tem.” Pausa para respirar, afobada. “Eu até acho bom, na verdade, que eles estejam aqui. O importante é que o míssil vai sair daqui e acertar o alvo em outro lugar. Nós não vamos ser atingidos. Ok, meu bem. Adeus.”
Roberto Almeida/Opera Mundi
O edifício fica em uma região periférica da capital inglesa.
Ao desligar o celular, Lucy conta com gentileza britânica que tem 22 anos e trabalha em uma escola local. Não quer e não vai dizer o sobrenome, muito menos ser fotografada. Deixa escapar, entre o gestual contido, sinais de frustração e irritação. Não há o que fazer.
Entre 27 de julho e 12 de agosto, período em que a Olimpíada de Londres estará a todo vapor, Lucy deitará na cama sob o peso de baterias antiaéreas britânicas, instaladas na cobertura do Fred Wigg Tower e prontas para destruir aeronaves que invadam o espaço aéreo sobre o Parque Olímpico, em Stratford, a poucos quilômetros dali.
Para o governo britânico, os mísseis terra-ar sobre a cabeça de Lucy e de sua família vão ajudar a defender a Olimpíada, que começa no dia 27 de julho, de ameaças terroristas. Ela diz não se importar com a militarização da área.
“Eu não sou contra a instalação dos mísseis. Não me sinto vulnerável”, garantiu ao Opera Mundi. “Claro que há um risco, mas eles [a polícia e o exército] não me incomodam em nada e a vida continua.”
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Apesar do discurso apaziguador, boa parte de seus 300 vizinhos, divididos em 117 apartamentos e distribuídos por 17 andares, mostrou-se incomodada o suficiente para contestar na Justiça a decisão unilateral do Ministério da Defesa britânico.
Eles afirmam que não foram consultados sobre o posicionamento dos mísseis na cobertura do prédio onde moram. A irritação foi levada à Corte de Londres há duas semanas, com base em dois artigos – o 1º e o 8º – da Convenção Europeia de Direitos Humanos. O artigo 1º afirma que os cidadãos europeus têm o direito de viver em paz em seus lares. O 8º sublinha que todos têm direito à vida familiar.
Ficou instalada a “crise dos mísseis” olímpica, que contrapôs os “benefícios econômicos” dos Jogos aos direitos humanos. Mas ela não durou mais de uma semana. A ação dos moradores foi rejeitada na última segunda-feira (09/07), com ganho de causa para o Ministério da Defesa britânico.
Policiamento, militarização e distúrbios
O Fred Wigg Tower é um choque arquitetônico nas fileiras de casinhas de tijolos, todas iguais, na tranquila e multicultural rua Montague. Custeado pelo governo, ele concentra acima de tudo residências sociais para pessoas em condições de vulnerabilidade financeira. São os chamados “council flats”, ou “apartamentos da subprefeitura”.
Suas janelas dos fundos dão para um amplo parque, com campos de futebol. Três garotos, descendentes de caribenhos, jogam bola no gramado. Eles não moram no prédio, mas em uma ruazinha no entorno. Também não querem se identificar, muito menos tirar fotos.
“Sou contra os mísseis. Deveriam pegar esse dinheiro e gastar em alguma coisa que preste”, disse um deles, de pronto.
Com a instalação dos mísseis e a militarização da área, o policiamento na rua Montague será ostensivo até o fim da Olimpíada. “Você está vendo ali aquela van da polícia? A ‘bully van’?”, continuou. “Você sabe por que eles estão ali na frente do prédio? Eu também não sei, mas eles estão ali para incomodar. Não falo com policiais, cansei de ser assediado por eles. E agora eles passam o dia inteiro ali, sem fazer nada”, desabafou.
Agência Efe
Ele emendou: “Ninguém protestou por causa dos mísseis. O único protesto que houve aqui foi por causa dos distúrbios do verão passado, por causa dessa relação errada com a polícia”, disse.
Para o garoto, o prédio e a região de Leytonstone não precisam do policiamento extra e nem dos mísseis. “O que precisa é esse país ter relações decentes com outros países e não entrar em guerras como tem entrado”, afirmou.
Multicultural e sem coesão
No caminho da estação de metrô Leytonstone até a rua Montague, onde está o Fred Wigg Tower, há lojas russas, polonesas, marroquinas, indianas, gregas e turcas. A área, no leste de Londres, concentra muito mais imigrantes do que britânicos de origem, com forte presença do Partido Nacionalista Britânico, de extrema direita.
Do prédio com mísseis no topo saíram, além da britânica Lucy, homens e mulheres muçulmanos. Um rapaz de 29 anos, desempregado, bate bola no pequeno playground. Ele mora na rua Montague, poucas casas ao lado, e também não quer se identificar. É descendente de jamaicanos e desdenha do “feliz multiculturalismo” de Londres. Diz apoiar-se na fé para manter-se em paz.
“Sabe por que não conseguiram derrubar essa história dos mísseis? Porque aqui as pessoas não se ajudam. Eu moro aqui há 21 anos e nunca conheci meu vizinho. É muita gente que chega e sai. Não tem sentimento de comunidade. Não tem coesão nenhuma”, afirmou.
Com passadas largas, continuou batendo bola contra a parede do playground. Em meio às pancadas, costurou críticas à polícia e disse não saber como vai se comportar frente ao poder dos militares. Para ele, o sentimento em Leytonstone é e sempre vai ser um só: “uma grande frustração”.