Após quatro séculos de dominação colonial espanhola e mais de meio século de república marcado por duas ditaduras e 50 anos de revolução, Cuba está novamente em uma encruzilhada. O governo deve definir um projeto viável de desenvolvimento num contexto histórico e geopolítico novo: a passagem das figuras históricas da revolução às novas gerações e as negociações com o governo norte-americano sob Barack Obama.
A professora francesa Janette Habel, do Instituto de Altos Estudos sobre América Latina, em Paris, considera que o regime conseguiu uma transição “perfeitamente controlada” quando Fidel Castro adoeceu. Especialista em Cuba, ela explica a lentidão das reformas pelo fato de a situação econômica ser muito preocupante e por haver um grande desafio: “reformar sem desestabilizar”.
Por que as reformas anunciadas por Raúl Castro estão demorando?
Existe uma enormidade de razões. Em primeiro lugar, a situação econômica agravou-se devido à crise financeira mundial. Em segundo, o governo enfrenta um desafio político: adaptar as instituições para que sobrevivam aos pais da revolução e, especialmente, a Fidel Castro. Isto fica mais difícil por causa de um terceiro ponto: a mudança de gerações. A juventude se diz revolucionária, mas é muito menos receptiva aos discursos oficiais. Esta geração quer participar de uma sociedade civil revitalizada. E tudo isso acontece em um contexto internacional complexo: Cuba deve negociar com o governo de Barack Obama, mantendo a sua relação especial com a Venezuela. É uma equação difícil.
O Presidente Raúl Castro disse que “tudo era negociável, exceto a soberania”. Esta declaração é um sinal de que Cuba terá mudanças significativas em breve?
A eleição de Raúl Castro como presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros não significa uma transição automática. É verdade que ele reconheceu publicamente que o sistema tinha problemas de funcionamento, e que era preciso ter “mudanças estruturais e conceituais”. Mas isso não quer dizer que estas mudanças serão muito rápidas, especialmente em um contexto de crise econômica mundial. Os dirigentes cubanos aprenderam com a experiência soviética e a dos países do Leste Europeu. Após quase 50 anos de “fidelismo” – dos quais dois sob governo interino –, a missão de Raúl hoje é garantir a continuidade e a estabilidade do sistema, e ao mesmo tempo reformá-lo. Não é simples: o presidente cubano é confrontado com um dilema: por um lado, a impaciência da população e sua própria idade, 78 anos, levam-no a agir rapidamente. Por outro lado, a necessidade de limitar o custo social das reformas força a mudanças progressivas e prudentes. O desafio é, como disse o sociólogo cubano Aurelio Alonso, “sair do caos sem cair sob a lei da selva”.
Por que a questão econômica é tratada como uma prioridade?
Porque a situação econômica é preocupante. Apesar de um aumento em 2005, os salários permanecem em média 76% menores que em 1989, quando Cuba perdeu o apoio da União Soviética, segundo cálculos do economista Carmelo Mesa-Lago. O próprio Raúl Castro reconhece esta situação. Em 26 de julho de 2008, ele declarou que “os salários eram claramente insuficientes para satisfazer as necessidades”. O mesmo vale para as aposentadorias: apesar do aumento em 2005, o nível real ainda está 61% menor que em 1989. Isto significa dificuldades em todas as famílias.
O sistema de assistência social universal permite compensar estas dificuldades?
Em parte, sim. O problema é que o sistema social também está ameaçado. Os salários são tão baixos que provocam uma deterioração dos sistemas de saúde e de educação. Os professores e trabalhadores altamente qualificados têm uma ou mais atividades em paralelo para aumentar a renda. Para responder à falta de professores, o governo criou um sistema de formação rápida. Mas o fraco desempenho destes chamados “mestres emergentes” gerou protestos da população.
Quanto à saúde, a transferência de dezenas de milhares de médicos cubanos para o exterior, especialmente para a Venezuela, vem causando escassez de profissionais de saúde. Alguns hospitais não têm mais o pessoal necessário. A nova política salarial do governo não é uma resposta suficiente: o problema é que um salário mais alto em pesos nunca compensa uma fonte paralela em dólares, que tem um poder aquisitivo muito mais alto. Enquanto o sistema monetário dual continuar, esses efeitos perversos que levam profissionais a procurar outro trabalho vão continuar.
Voltando à questão econômica: quais são os principais obstáculos enfrentados pelo governo cubano?
Cuba lida com muitas dificuldades que se manifestaram de maneira concomitante. Primeiro, os problemas conjunturais: o aumento dos preços das matérias-primas importadas, os danos consideráveis causados por três furacões consecutivos, e o impacto da crise econômica e financeira internacional. Tudo isso pesa sobre o crescimento em Cuba, que está em declínio. Enquanto isso, o governo tem de enfrentar questões estruturais: a forte dependência em relação às importações, a baixa produtividade, a centralização burocrática e a persistência de um sistema com duas moedas (o peso cubano e o dólar).
Nesse contexto, as margens de manobra econômicas para realizar as reformas são limitadas. Além disso, nem todos os membros do PCC (Partido Comunista de Cuba) concordam sobre as medidas necessárias. Talvez essas divergências sejam as que causaram a demissão de vários membros do governo – incluindo o ex-vice-presidente Carlos Lage, e o ex-ministro das Relações Exteriores, Felipe Pérez Roque – e o adiamento do congresso do PCC, que estava previsto para o terceiro trimestre de 2009.
Quais são as medidas já tomadas pelo governo?
Por enquanto, o governo está avançando a passos curtos. O que já dá para ver são modificações do aparelho do Estado para torná-lo mais funcional – o que levou, por exemplo, à fusão dos ministérios da área econômica. Além disso, Raúl já anunciou algumas medidas impopulares, porém pontuais. A idade da aposentadoria foi aumentada – 55 a 60 anos para as mulheres, 60 a 65 para os homens.
O sistema salarial também foi alterado: agora, os salários não são mais limitados no setor público e podem variar em função do desempenho e dos resultados. Hoje, na rua, dá para ver cartazes oficiais dizendo que “Para ganhar mais, tem de se produzir mais”. É uma mudança cultural enorme.
O governo também reduziu pela metade as viagens ao exterior dos funcionários e dos executivos das grandes empresas. Por fim, indicou a intenção de eliminar progressivamente as “gratuidades indevidas e altamente subsidiadas, bem acima das possibilidades atuais do país”. Mas a implantação destas reformas é árdua. A nova escala salarial, por exemplo, não é aplicada em muitas províncias, por causa das resistências locais.
Todos os setores da economia estão sendo afetados por essas reformas?
Há uma clara prioridade dada à agricultura. O governo está empenhado em reduzir as importações de alimentos, que são cada vez mais caras, especialmente dos produtos básicos para os cubanos, como arroz, feijão e trigo. Mas a situação na agricultura é muito preocupante. Em 2007, segundo o ONE (Escritório Nacional de Estatísticas), a utilização das terras agrícolas foi de apenas 45%. Hoje, a agricultura não é mais uma fonte de divisas: os produtos agrícolas representaram 16% das exportações em 2007 contra 88% em 1990, quando o açúcar era o principal produto vendido fora. Existe uma distancia enorme entre o setor público, pouco produtivo, e o setor privado, que fornece mais da metade da produção nacional, trabalhando em apenas 30% das terras cultivadas.
Foi por isso que Raúl Castro anunciou uma série de reformas para aumentar a produção de alimentos, declarada prioridade de segurança nacional. As terras não cultivadas foram distribuídas em usufruto para produtores privados (7,5% da área agrícola foram atribuídas em janeiro de 2009). Os preços pagos aos agricultores para certos produtos foram aumentados, e o sistema está em processo de descentralização. Foram criadas 169 delegações municipais de agricultura para trabalhar toda a terra e melhorar os mecanismos de comercialização, que eram péssimos.
A única maneira de reformar o sistema é a conversão para uma sociedade de mercado?
O debate é precisamente este. Alguns economistas acreditam que Cuba terá que derrubar todo o “edifício” econômico atual, para substituí-lo com o aumento do investimento estrangeiro e a introdução de formas de propriedade não-estatais, não só na agricultura, mas também na indústria e nos serviços. Mas isso não é tão simples: os dirigentes políticos lembram que as reformas de mercado que foram aplicadas em Cuba durante a crise, após o colapso da União Soviética (o “período especial”), salvaram a economia, mas também perturbaram o equilíbrio social anterior. Ir mais longe é correr o risco de comprometer a estabilidade política do país, enquanto o governo deve se preparar para a era pós-irmãos Castro.
Leia segunda parte:
Mudanças dependem de jogo de forças na sociedade cubana
Leia terceira parte:
Reformistas em Cuba tomam Vietnã como modelo, apesar de diferenças
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