A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou recentemente um projeto de lei de radiodifusão – elaborado pelo governo – que pretende substituir a legislação vigente desde a última ditadura militar (1976-1983).
Luis Lazzaro, coordenador-geral do Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer), é o principal mentor do projeto, que ainda precisa passar pelo Senado, provavelmente em outubro. Ex-funcionário da televisão pública Canal 7 e da agência estatal Telam, ele explica nesta entrevista ao Opera Mundi a necessidade de reformar uma lei marcada pela censura da ditadura e a concentração consequente das privatizações dos anos 1990.
Militante sindical no setor audiovisual, ele trabalhou no Brasil, na Holanda e na Nicarágua, dedicando-se a estudar a relação entre qualidade democrática e propriedade dos meios.
Como surgiu o projeto de lei de radiodifusão que acabou de ser aprovado pela Câmara dos deputados?
Foi um processo muito longo, que começou com uma ação da sociedade civil. Em 2004, um grupo de organizações, que incluía meios comunitários, pequenas empresas, militantes dos direitos humanos, universidades, setores religiosos, assim como os principais representantes sindicais de trabalhadores, formaram uma Coalizão por uma radiodifusão democrática. Eles publicaram uma proposta de 21 pontos, com a ideia de refletir o conceito de comunicação social como direito humano básico. No começo, o governo não integrou esta reflexão. Continuava a negociar com os grandes grupos concentrados. Inclusive, em 2005, o então presidente Nestor Kirchner publicou um decreto muito polêmico, que proporcionava dez anos suplementares às concessões dos canais televisivos, sem que isso fosse necessário, já que faltavam ainda muitos anos. Uma lei, porém, já tinha lançado o processo de democratização, com a reforma de um artigo que dava às empresas comerciais o monopólio da propriedade dos meios. Ou seja, antes dessa modificação, uma organização sem fins lucrativos tinha dado início à proibição do controle por uma rádio ou um canal de televisão.
Por que o senhor achar indispensável reformar a lei de radiodifusão?
Trata-se de saldar uma dívida histórica, pois a norma vigente é da época da ditadura e deve ser adequada às necessidades de uma nação democrática. Por exemplo, na lei vigente, que foi votada em 1980, há um artigo que cria o Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer), instalando em seu diretório um representante de cada um dos corpos das Forças Armadas e dos serviços de inteligência. Por esta razão, o Comitê está intervindo no Estado desde a volta da democracia. Como a lei da ditadura – cujo objetivo era a censura e o controle – não foi alterada em 26 anos, não temos um diretório, senão, seriamos obrigados a convidar os militares. O outro problema do panorama audiovisual da Argentina é a extrema concentração dos meios de comunicação.
As privatizações da década de 1990 alteraram a lei?
Como já mencionei, os militares impuseram uma lei que dava às empresas privadas o monopólio do setor audiovisual. Antes de 1980, existiam alguns meios controlados por estados, prefeituras ou universidades. A lei congelou a situação. Ou seja, esses meios não desapareciam, mas não podiam ser desenvolvidos, e novos atores eram proibidos. O texto também tinha estabelecido um limite de quatro licenças de televisão em todo o país, assim como uma impossibilidade de transferir as mesmas, e um princípio de proibição da propriedade cruzada jornais /rádio-televisão ao estilo norte-americano. A democracia não consegue resolver o tema e aparecem os processos de privatizações. Isso desemboca numa flexibilização da lei: o número limite de concessões passa de quatro para 24, se autoriza sua transferência, tal como o direito à propriedade cruzada. Foram removidos todos os obstáculos para uma grande concentração. Em 1994, com o tratado comercial com os Estados Unidos, os norte-americanos ganharam a possibilidade de investir nos meios, e o fazem, com força, na televisão a cabo. A evolução é estimulada também pelo Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional). No final dos anos 1990, temos uma televisão que depende altamente do cabo. A penetração dessa tecnologia é uma das mais altas do mundo. A Argentina é ultrapassada só pelos Estados Unidos, Canadá, e Alemanha. Mais de 60% da população consome a televisão pagando, inclusive se é a televisão via satélite, em teoria gratuita, por uma razão de qualidade.
Qual é o nível de concentração da mídia argentina?
Com o fim das barreiras legislativas durante a década de 1990, a concentração virou uma característica da mídia argentina. O grupo Clarín estabeleceu um verdadeiro império midiático. Ele controla uma parte da indústria de papéis, jornais, canais de televisão aberta em Buenos Aires e no interior, rádios AM e FM em todo o país, e tem um sistema de distribuição de televisão a cabo dominante. Além disso, também produz a maioria dos conteúdos para a televisão, aberta e a cabo, já que tampouco há uma proibição da integração vertical como existem em outros países. Por fim, tinha, até o mês passado, a exclusividade sobre os direitos de futebol, que se estendiam ao Uruguai e Paraguai. Esta última vantagem tem sido uma ferramenta estratégica para destruir a concorrência. Logo, temos o grupo de telefonia, que se chama Telefe, dono também de um grande canal e de várias transmissoras. Hoje, 80% do conteúdo que circula por todas as redes são produzidos por estes dois grupos. Esta situação explica porque, apesar dos traços da ditadura que contém a lei, os grupos tradicionais sempre bloquearam sua reforma profunda.
Qual é a penetração dos meios públicos hoje?
Ela é muito baixa. A televisão pública, Canal 7, nunca foi seriamente pensada como um meio público. Foi abandonada por muitos anos, depois usada como uma ferramenta frívola de poder nos anos 1990, uma verdadeira televisão-lixo. A partir de 2000, se inicia um processo de recuperação, mas com muito atraso tecnológico. Imagine que, em 2007, renovamos as câmeras Bosh que foram usadas para filmar a Copa do Mundo de 1978. Havia se passado quase 30 anos!
Hoje o Canal 7 não passa de 2 ou 3 pontos de audiência. Não é ínfimo, mas também não serve para o debate público. O pior é que ainda não é transmitido em muitos lugares. A lei da ditadura impedia a instalação de um canal público (seja estatal ou estadual) onde já havia um canal comercial. Uma coisa absurda, como se a televisão pública pudesse fazer concorrência à privada, quando são na verdade duas lógicas: uma cidadã, outra de mercado. O Canal 7 não tinha, por exemplo, o direito de ser emitido em Mar de Plata, Córdoba, Mendoza, Bahia Blanca, Tucuman…
E no interior do país, nas pequenas cidades?
As pequenas cidades apresentam uma situação um pouco mais equilibrada, já que o interesse comercial se concentrou nas grandes aglomerações. As cidades e estados mais afastados, que já tinham meios públicos ou universitários antes da proibição de criação de 1980, conseguiram mantê-los. É o caso de toda a Patagônia, Pampa, San Luis, Rioja, Formosa e Misiones. Córdoba e Tucuman ainda possuem canais abertos universitários e rádios AM e FM. O problema é que todos os canais acabam reproduzindo programas de canais comerciais de Buenos Aires, por falta de conteúdo próprio.
O que aconteceu para que o Executivo tenha se convencido da necessidade de propor outro projeto de lei?
É a chegada de Cristina Kirchner à presidência, no final de 2007, que muda a posição do Executivo. Ela já tinha sinalizado seu interesse pelo tema, mas sem ainda se envolver totalmente. Mas, poucos meses depois da posse, começou a crise com o chamado “campo”, o setor agropecuário. A batalha foi duríssima, os fazendeiros chegaram a paralisar o país. Ficou muito claro o papel da mídia tradicional, que apoiou sem ambiguidades as entidades rurais. Neste contexto, a presidente convocou a coalizão por uma radiodifusão democrática, e pediu a este Comitê elaborar um projeto de lei baseado nos 21 pontos.
É a crise com o setor agropecuário que acorda o interesse do Executivo?
De certa maneira, sim. Existe claramente uma relação entre o nível de agressividade da mídia contra o governo e a decisão de por fim aos pedidos de democratização dos movimentos sociais. Nesta crise, a mídia substitui totalmente a oposição política, que parecia incapaz de articular um discurso claro.
Com a convocação de Cristina, a equipe que elaborou política e juridicamente o anteprojeto da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, que eu liderava com o gerente da agência oficial Telam, Sergio Fernández Novoa, partiu rumo às províncias no final de março. O objetivo era preparar o terreno do debate nacional a ser aberto em 15 foros regionais, para obter o máximo de legitimidade para o projeto. Cerca de 10 mil pessoas participaram dos debates. As organizações patronais e os partidos da oposição se retiraram das discussões, alegando que o lugar do debate não era a sociedade, mas o Congresso. A grande imprensa ignorou esse processo. Não foi atacado, mas foi silenciado. As consultas permitiram a reforma de 50 artículos do anteprojeto, devolvidos finalmente ao Executivo, que acabou de apresentá-lo no Congresso.
O texto do projeto foi questionado pelos grandes grupos midiáticos, com o Clarín à frente, e pela oposição política ao governo…
Sim, o nível de ataque de alguns membros da oposição chegou a ser caricatural. Por exemplo, a Argentina recebeu a visita de Franck William La Rue, relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para a liberdade de expressão. Ele afirmou que o processo de consulta popular que estávamos organizando era um exemplo internacional e que nunca tinha visto uma coisa similar em outros países. Quando ele foi ao Congresso, foi denunciado por deputados da oposição de intervenção nos assuntos internos da Argentina. Ele lembrou que o direito da comunicação é um direito humano e internacional, que não tem fronteira, e sobre o qual a ONU tem jurisdição para denunciar abusos ou parabenizar por tal ou tal iniciativa.
Existe uma bancada da mídia no Congresso?
Claro, é notório o peso que tem a mídia no Congresso. Eles são os poderes permanentes. Os políticos vêm e vão, mas eles ficam. Em tempos eleitorais, a capacidade de pressão dos grandes grupos midiáticos é ainda mais importante.
Qual é a principal critica deles com relação ao projeto de lei?
A primeira é que o governo quer controlar os meios com a lei. É um disparate total porque hoje, com o comitê de intervenção do Comfer, o governo tem todo o poder que quiser, já que não tem diretório. Não há participação do Congresso e ainda menos da oposição. O projeto de lei propõe que o futuro diretório seja integrado por parlamentares, inclusive da oposição. Tem previsto também um Conselho Federal com participação de todos os atores sociais da comunicação, incluindo os governos provinciais, o Parlamento, câmaras empresariais, organizações não-governamentais e oposição. A outra grande crítica era em relação à permissão para que as empresas telefônicas ingressassem no sistema de meios audiovisuais por meio do serviço adicional de televisão por subscrição. Mas o governo decidiu retirar esta cláusula para aumentar as chances de aprovação da lei.
O projeto propõe também desfazer gradativamente a concentração da propriedade dos meios. Isso incomoda a grande mídia?
Claro que o ponto central da discórdia é o foco no fim do monopólio. O texto estabelece que uma empresa não pode ter mais de dez estações de rádio e televisão, 14 menos que o limite atual, e que também não pode ser titular de um canal de TV via satélite e de um a cabo em uma mesma localidade. A concentração vertical também deve ser limitada, já que o projeto de lei prevê cotas de produção local e independente. Com esses elementos, a oposição sustenta que a lei abrirá o caminho para maior presença estatal em canais de TV e rádios, com um objetivo de controle.
Por que o governo de Nestor Kirchner não fez nada antes para mudar a lei de radiodifusão?
Eu faria a mesma pergunta a vocês: porque o governo Lula, apesar de sua imensa popularidade, não fez nada para democratizar a mídia no Brasil? Eu acho que, em ambos os países, é um problema de formação política. Nessa última época após a volta da democracia, os governantes lidaram com os meios como se não existissem a concentração e as novas tecnologias. É um erro. Não falamos mais de grandes jornais ou rádios, mas sim de corporações econômicas, com uma grande quantidade de interesses cruzados. No caso da Argentina, se vincularam com atores financeiros locais e internacionais, mas também com setores econômicos, sobretudo o setor agropecuário. Quando um meio apoia entidades rurais hoje, não é só para informar os leitores, mas também porque têm investimentos direitos no setor. Clarín e La Nación são sócios de feiras agropecúarias. Por isso, viraram atores políticos.
O poder da agenda política da mídia conservadora é limitado, já que não conseguiu impedir a série de eleições esquerdista na América Latina…
De fato, o fracasso neoliberal incentivou uma onda de movimentos sociais, e os meios não podiam ir contra. Inclusive porque eles vivem também do mercado interno, e a crise econômica quase os matou também. Mas quando volta a bonança econômica, o contexto muda, e eles voltam a atacar. Na Argentina, o ponto de inflexão foi claramente a eleição de Cristina. Ela nem teve seis meses de lua-de-mel.
A estratégia dos grandes grupos é a de trabalhar com série de acontecimentos. Por um tempo, tivemos a série da insegurança: a mídia martelou todos os dias o tema, sugerindo uma incapacidade do Estado para controlar o problema. Não é que a insegurança não existe, mas é apresentada de maneira única, sempre para enfraquecer o governo. Depois, foi a do autoritarismo, com a denúncia dos super-poderes do Executivo. Logo, sem medo de serem incoerentes, passamos ao Executivo fraco, o governo que não governa. Agora, foi lançado o tema da pobreza. São os ricos que se preocupam pela pobreza e culpam o governo.
Essa tensão entre governos e meios se estendeu a toda América Latina. O senhor acha que é a mesma problemática que na Argentina?
Existe um fenômeno claro da política atual que é o enfraquecimento dos partidos tradicionais, que não conseguem mais articular o debate público. Isso deu aos meios um grande poder, porque quando mais fraca a estrutura política, mais dependente ela é dos atores da comunicação. Acho que é péssimo para a democracia. Estamos delegando uma missão pública, que é a formação da cidadania e de uma opinião pública independente, a empresas privadas que têm uma agenda própria e, inclusive, candidatos políticos para defendê-la. Não é um problema argentino, acho que é o problema de toda a região. Em toda América Latina a democracia tem um limite concreto se não resolver o tema da comunicação. Hoje, o problema não é mais lidar com um jornal aliado com os militares. Com a sofisticação financeira e tecnológica, é muito mais complexo.
* Texto e fotos
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