Na segunda parte da entrevista ao Opera Mundi, o coordenador-geral do Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer), Luis Lazzaro, analisa como a eleição de Cristina Kirchner à presidência da Argentina e a subsequente criação do anteprojeto da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual provocaram a ira dos grandes grupos midiáticos no país.
Segundo Lazzaro, na Argentina se configurou uma perigosa substituição do papel dos partidos políticos tradicionais – enfraquecidos e incapazes de articular o debate público – pelos meios de comunicação, que concentraram poder e agora temem perdê-lo. “Os políticos vêm e vão, mas eles ficam”, afirma.
O que aconteceu para que o Executivo tenha se convencido da necessidade de propor outro projeto de lei?
É a chegada de Cristina Kirchner à presidência, no final de 2007, que muda a posição do Executivo. Ela já tinha sinalizado seu interesse pelo tema, mas sem ainda se envolver totalmente. Mas, poucos meses depois da posse, começou a crise com o chamado “campo”, o setor agropecuário. A batalha foi duríssima, os fazendeiros chegaram a paralisar o país. Ficou muito claro o papel da mídia tradicional, que apoiou sem ambiguidades as entidades rurais. Neste contexto, a presidente convocou a coalizão por uma radiodifusão democrática, e pediu a este Comitê elaborar um projeto de lei baseado nos 21 pontos.
É a crise com o setor agropecuário que acorda o interesse do Executivo?
De certa maneira, sim. Existe claramente uma relação entre o nível de agressividade da mídia contra o governo e a decisão de por fim aos pedidos de democratização dos movimentos sociais. Nesta crise, a mídia substitui totalmente a oposição política, que parecia incapaz de articular um discurso claro.
Com a convocação de Cristina, a equipe que elaborou política e juridicamente o anteprojeto da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, que eu liderava com o gerente da agência oficial Telam, Sergio Fernández Novoa, partiu rumo às províncias no final de março. O objetivo era preparar o terreno do debate nacional a ser aberto em 15 foros regionais, para obter o máximo de legitimidade para o projeto. Cerca de 10 mil pessoas participaram dos debates. As organizações patronais e os partidos da oposição se retiraram das discussões, alegando que o lugar do debate não era a sociedade, mas o Congresso. A grande imprensa ignorou esse processo. Não foi atacado, mas foi silenciado. As consultas permitiram a reforma de 50 artículos do anteprojeto, devolvidos finalmente ao Executivo, que acabou de apresentá-lo no Congresso.
O texto do projeto foi questionado pelos grandes grupos midiáticos, com o Clarín à frente, e pela oposição política ao governo…
Sim, o nível de ataque de alguns membros da oposição chegou a ser caricatural. Por exemplo, a Argentina recebeu a visita de Franck William La Rue, relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para a liberdade de expressão. Ele afirmou que o processo de consulta popular que estávamos organizando era um exemplo internacional e que nunca tinha visto uma coisa similar em outros países. Quando ele foi ao Congresso, foi denunciado por deputados da oposição de intervenção nos assuntos internos da Argentina. Ele lembrou que o direito da comunicação é um direito humano e internacional, que não tem fronteira, e sobre o qual a ONU tem jurisdição para denunciar abusos ou parabenizar por tal ou tal iniciativa.
Existe uma bancada da mídia no Congresso?
Claro, é notório o peso que tem a mídia no Congresso. Eles são os poderes permanentes. Os políticos vêm e vão, mas eles ficam. Em tempos eleitorais, a capacidade de pressão dos grandes grupos midiáticos é ainda mais importante.
Qual é a principal critica deles com relação ao projeto de lei?
A primeira é que o governo quer controlar os meios com a lei. É um disparate total porque hoje, com o comitê de intervenção do Comfer, o governo tem todo o poder que quiser, já que não tem diretório. Não há participação do Congresso e ainda menos da oposição. O projeto de lei propõe que o futuro diretório seja integrado por parlamentares, inclusive da oposição. Tem previsto também um Conselho Federal com participação de todos os atores sociais da comunicação, incluindo os governos provinciais, o Parlamento, câmaras empresariais, organizações não-governamentais e oposição. A outra grande crítica era em relação à permissão para que as empresas telefônicas ingressassem no sistema de meios audiovisuais por meio do serviço adicional de televisão por subscrição. Mas o governo decidiu retirar esta cláusula para aumentar as chances de aprovação da lei.
O projeto propõe também desfazer gradativamente a concentração da propriedade dos meios. Isso incomoda a grande mídia?
Claro que o ponto central da discórdia é o foco no fim do monopólio. O texto estabelece que uma empresa não pode ter mais de dez estações de rádio e televisão, 14 menos que o limite atual, e que também não pode ser titular de um canal de TV via satélite e de um a cabo em uma mesma localidade. A concentração vertical também deve ser limitada, já que o projeto de lei prevê cotas de produção local e independente. Com esses elementos, a oposição sustenta que a lei abrirá o caminho para maior presença estatal em canais de TV e rádios, com um objetivo de controle.
Por que o governo de Nestor Kirchner não fez nada antes para mudar a lei de radiodifusão?
Eu faria a mesma pergunta a vocês: porque o governo Lula, apesar de sua imensa popularidade, não fez nada para democratizar a mídia no Brasil? Eu acho que, em ambos os países, é um problema de formação política. Nessa última época após a volta da democracia, os governantes lidaram com os meios como se não existissem a concentração e as novas tecnologias. É um erro. Não falamos mais de grandes jornais ou rádios, mas sim de corporações econômicas, com uma grande quantidade de interesses cruzados. No caso da Argentina, se vincularam com atores financeiros locais e internacionais, mas também com setores econômicos, sobretudo o setor agropecuário. Quando um meio apoia entidades rurais hoje, não é só para informar os leitores, mas também porque têm investimentos direitos no setor. Clarín e La Nación são sócios de feiras agropecúarias. Por isso, viraram atores políticos.
O poder da agenda política da mídia conservadora é limitado, já que não conseguiu impedir a série de eleições esquerdista na América Latina…
De fato, o fracasso neoliberal incentivou uma onda de movimentos sociais, e os meios não podiam ir contra. Inclusive porque eles vivem também do mercado interno, e a crise econômica quase os matou também. Mas quando volta a bonança econômica, o contexto muda, e eles voltam a atacar. Na Argentina, o ponto de inflexão foi claramente a eleição de Cristina. Ela nem teve seis meses de lua-de-mel.
A estratégia dos grandes grupos é a de trabalhar com série de acontecimentos. Por um tempo, tivemos a série da insegurança: a mídia martelou todos os dias o tema, sugerindo uma incapacidade do Estado para controlar o problema. Não é que a insegurança não existe, mas é apresentada de maneira única, sempre para enfraquecer o governo. Depois, foi a do autoritarismo, com a denúncia dos super-poderes do Executivo. Logo, sem medo de serem incoerentes, passamos ao Executivo fraco, o governo que não governa. Agora, foi lançado o tema da pobreza. São os ricos que se preocupam pela pobreza e culpam o governo.
Essa tensão entre governos e meios se estendeu a toda América Latina. O senhor acha que é a mesma problemática que na Argentina?
Existe um fenômeno claro da política atual que é o enfraquecimento dos partidos tradicionais, que não conseguem mais articular o debate público. Isso deu aos meios um grande poder, porque quando mais fraca a estrutura política, mais dependente ela é dos atores da comunicação. Acho que é péssimo para a democracia. Estamos delegando uma missão pública, que é a formação da cidadania e de uma opinião pública independente, a empresas privadas que têm uma agenda própria e, inclusive, candidatos políticos para defendê-la. Não é um problema argentino, acho que é o problema de toda a região. Em toda América Latina a democracia tem um limite concreto se não resolver o tema da comunicação. Hoje, o problema não é mais lidar com um jornal aliado com os militares. Com a sofisticação financeira e tecnológica, é muito mais complexo.
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