O Exército mexicano tem a ordem de “abater” civis. Isso é o que se entende de um relatório publicado nesta quinta-feira (02/07) pelo Centro Miguel Agustín Pro Juárez, que representa legalmente a principal testemunha do caso da chacina de Tlatlaya, episódio ocorrido em 30 de junho de 2014 no qual 22 pessoas morreram.
Os documentos fornecidos pela organização jesuíta de defesa dos direitos humanos, que se encarrega da defesa de Julia* — mãe de uma das vítimas e ela mesmo sobrevivente do caso —, são contundentes e provêm diretamente do julgamento militar aberto contra oito militares, que na realidade estão respondendo a um processo jurídico por falhas de conduta na disciplina militar, e não pelo homicídio de 22 jovens. Opera Mundi teve acesso com exclusividade no Brasil a trechos do relatório produzido pela entidade humanitária.
Juan José Estrada Serafin/Opera Mundi (arquivo/jan.2014)
Soldados do Exército mexicano patrulham área de Pareo; relatório flagrou ordem de 'abater' civis
Dezenove dias antes do ocorrido, em 11 de junho de 2014, o documento (intitulado Ordem de Destituição da Base de Operações ‘Santo Antônio do Rosário’) produzido pelos militares incentiva de forma explícita graves violações aos direitos humanos. Do catálogo de ordens que regulamenta a ação da base militar, chama atenção o ponto VII, no qual se lê claramente:
As tropas deverão operar durante a noite de forma massiva e durante o dia reduzir a atividade com a finalidade de abater delinquentes em horas de escuridão, já que o maior número de delitos é cometido nesse horário.
emA Ordem de Destituição do comando responsável pela base de operações contém instruções para o novo Tenente da Infantaria, a partir da “Operação Dragão” (cujo conteúdo se desconhece). É uma ordem cujas instruções devem ser seguidas para o bom funcionamento da base. Nela são indicadas as operações e a maneira que devem ser conduzidas no “combate à delinquência” e se especifica que são ordens provenientes do “Alto Comando”, isto é, do Secretário de Defesa Nacional.
Tlatlaya: de operação antitráfico a execução arbitrária
No dia 30 de junho de 2014, no município de Tlatlaya, elementos do 102º Batalhão de Infantaria de San Miguel Ixtapan, do Estado do México, pertencente à 22º Zona Militar, “abateram” 22 jovens em um armazém. Pelo menos 9 deles foram executados depois de rendidos. Entre as pessoas “abatidas”, estava uma adolescente de apenas 15 anos, filha de Julia.
A operação foi imediatamente reivindicada tanto pelo Exército como pelo governo do Estado do México como um êxito na luta contra o crime organizado. Três meses depois, uma reportagem de Pablo Ferri na revista Esquire trouxe à luz um testemunho: não se tratou de um tiroteio, mas de uma execução arbitrária.
A testemunha, durante esse ano, teve de se proteger do Estado porque seu depoimento tem sido crucial para reconstruir um caso que é representativo de uma prática generalizada.
Nos últimos meses, no México, aconteceram vários casos de matanças realizadas por elementos do Exército, muitas vezes acompanhados por agentes da Polícia Federal, em operações conjuntas, nas quais é possível imaginar a hipótese de execuções arbitrárias, e não de “confrontos”, como têm sido definidos pelas mesmas fontes militares e do governo. Os casos do massacre de Apatzingán, no dia 6 de janeiro de 2015, onde foram executadas 16 pessoas e o massacre de Tanhuato onde, no último dia 22 de maio, foram executadas 42 pessoas acusadas de serem “delinquentes” e um policial federal, são emblemáticos nesse cenário.
Elemento novo: ordem militar formal
A novidade do relatório do Centro Prodh (Centro Miguel Agustín Pro Juárez) lançado hoje é que a ordem de matança sistemática de civis, utilizada como estratégia militar, tenha sido dada por escrito, de modo que a instituição militar teve conhecimento oficial dessa disposição.
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Como demonstram as advogadas e os advogados do Centro Prodh em seu relatório, a ordem de operações esclarece duas questões-chave: a primeira está relacionada à definição de delinquentes. Se é o Exército que estabelece, sem um processo, quem é delinquente e quem não é, como se observa no documento, então acaba atropelando o Poder Judiciário, assim como, sobretudo, do princípio de presunção de inocência, como demonstra o caso de Tlatlaya, no qual os soldados supostamente executaram pessoas que já não podiam se defender, que não estavam agredindo militares uma vez que tinham se rendido.
A outra questão é que, em coerência com o conteúdo desses documentos, tornados públicos, aparentemente o Exército mexicano tem uma política de privação arbitrária da vida contra civis que não são julgados pelos supostos delitos que teriam cometido. Esse tipo de ordem está sendo implementada em um país no qual não há guerra ou conflito armado declarado pelo Estado.
O Centro Prodh teve acesso a essa informação porque representa Julia legalmente, a quem não foi reconhecido o caráter de vítima em nenhum processo penal militar ou civil, e quem, desde que teve conhecimento do litígio, lutou para ter acesso ao expediente.
O que o Centro Prodh pede é que sejam tornados públicos todos os documentos que integram a chamada “Operação Dragão” e que todas as autoridades militares provavelmente responsáveis por esse tipo de ordem sejam intimadas a comparecer em um julgamento civil. Seria coerente, então, começar pelo secretário de Defesa Nacional, Salvador Cienfuegos Zepeda, de que provinham as ordens.
* 'Júlia' é o nome fictício atribuído à testemunha e mãe de uma das vítimas da chacina de Tlatlaya