O presidente Evo Morales deu um passo em direção à reforma agrária na Bolívia. O governo entregou cerca de 38 mil hectares* de terra aos guaranis, etnia há tempos submetida a um sistema de trabalho servil no leste da Bolívia. Também anunciou a expropriação oficial de cinco latifúndios, concentrados em mais de 36 milhões de hectares, onde centenas de guaranis são forçados a trabalhar em condições precárias.
“Esse é um dia histórico, estamos começando a acabar com o latifúndio,” disse Evo a uma platéia de 3 mil guaranis na tarde de sábado (14). As terras tomadas serão direcionadas primariamente para o cultivo coletivo. “Ter terra é ter liberdade e se há terra e liberdade, há justiça”.
Muitos daqueles que se tornarão donos de propriedades passaram a vida servindo aos latifundiários. “Meus pais comiam como cachorros ao redor de uma bandeja no chão, onde seus patrões depositavam a comida. Minha mãe morreu encarcerada e com medo”, afirmou Miguel Corrales, 36 anos, ao jornal El Cambio.
Seu testemunho faz parte de uma investigação sobre a servidão nas áreas rurais dos departamentos de Santa Cruz e Chuquisaca. Os relatórios, reunidos durante dez anos, incluem inúmeros episódios de abusos: famílias submetidas a regimes de trabalho de 10 a 14 horas por dia, condições desumanas, crianças vendidas para trabalhar no campo e castigos físicos. Nos últimos meses, o governo entrou em fazendas e emancipou diversas mulheres e crianças.
“Este foi um evento simbologicamente importante,” afirmou Miriam Campos, diretora do Programa de Povos Indígenas e Empoderamento, agência responsável pelas investigações feitas na última década sobre o problema da escravidão na Bolívia. “Ainda há muito caminho pela frente antes que a expropriação de terras se torne uma realidade. Muitos desses títulos ainda estão num estágio em que podem ser judicialmente reivindicados pelos proprietários, e provavelmente serão”.
Expropriações
Apesar da cerimônia de expropriação de terras ter sido simbólica, outro anúncio feito sábado carrega mais significado. As cinco fazendas expropriadas, seja porque a terra era improdutiva – o que é ilegal segundo a nova Constituição – seja porque os donos mantinham trabalhadores escravos, marca a primeira fase deste processo, aprovado em referendo popular.
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Ao longo dos últimos três anos, o programa de reforma agrária do governo se concentrou principalmente em apressar o processamento e entrega de títulos de terras, primariamente terras do governo. Sete milhões de hectares foram distribuídos, principalmente para grupos indígenas, mas a maioria se referia a requerimentos dos anos 90, que estavam presos na burocracia.
Em seu discurso, o presidente pediu que a população tenha mais paciência, argumentando que o governo não pode resolver “um problema de 500 anos” em somente três.
Miriam Campos, no entanto, acha que mais providências podem ser tomadas de imediato. “É ótimo que as terras estejam sendo distribuídas, mas é só o começo”, afirmou. “Os guaranis precisam de mantimentos, de assistência técnica e de grandes programas. Estamos falando de um povo que viveu sob a dominação de outros por gerações e não têm nada substancial para reiniciar a vida”.
Os guaranis vivem na Bolívia, Argentina, Brasil, Uruguai e, principalmente, Paraguai, onde representam a etnia indígena mais numerosa. Na Bolívia, são o terceiro maior grupo, atrás dos quéchua e dos aimarás, e estão localizados principalmente em Santa Cruz. Foram o alvo principal das missões jesuítas durante a colonização espanhola, missões que ainda podem ser encontrados nas terras originalmente pertencentes aos guaranis.
* Cada hectare corresponde a um campo de futebol.
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