Foram leituras e leituras de Os Buddenbrooks, obra-prima de Thomas Mann publicada em 1901, para atingir um resultado excepcional: a recriação, imaculada, do salão de jantar do casarão hanseático na Mengstrasse, número 4. O trabalho árduo dos pesquisadores reforça seu simbolismo particular. O ambiente é o palco central da saga de quatro gerações dos Buddenbrooks, aclamado retrato literário da decadência da burguesia alemã no século 19.
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Recriação do salão de jantar do casarão hanseático na Mengstrasse, número 4, na cidade alemã de Lübeck
A proeza da exposição Die “Buddenbrook” – Ein Jahrhundertroman [Os Buddenbrooks – Romance do Século], no segundo andar do Museu Buddenbrookhaus em Lübeck, norte da Alemanha, é fazer o visitante olhar à sua volta, de livro na mão, e comparar a disposição dos objetos com as descrições primorosas de Mann. Os santos, os móveis e a janela que oferece vista para a Igreja Luterana de Santa Maria, cujos sinos ainda ressoam como no texto, são os protagonistas dessa imersão.
“Os cômodos são produto da imaginação do autor. Então fizemos as salas ‘fantásticas’, que chamamos de ‘passeio pelo romance’. Para fazer com que elas se parecesse com o que Thomas Mann imaginava, iniciamos uma investigação artística e histórica para encontrarmos objetos semelhantes”, contou a Opera Mundi o curador da exposição, Holger Pils.
“Mas houve um problema”, diverte-se Pils. “Há partes do ambiente que não são descritas no livro, como o assoalho. Não há chão em Os Buddenbrooks! Então deixamos ele neutro, um espaço em branco.”
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É possível passar horas ali, em pé sobre o chão neutro, revivendo as cenas dramáticas da longa crise da família de mercadores. Os exemplares da obra, disponíveis para o visitante em inglês e alemão, têm suas páginas marcadas nas passagens ligadas ao ambiente, como o salão onde os irmãos Thomas e Antonie Buddenbrook, personagens importantes da trama, discutiram um escandaloso segundo divórcio que abalou as estruturas da casa.
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O número 4 da Mengstrasse, palco dos atritos entre os Buddenbrooks, foi também lar da família Mann. Há reconhecidos traços autobiográficos no texto, que despontam a simbiose entre a vida do autor em Lübeck e os altos e baixos dos protagonistas.
A construção, exemplo da arquitetura nas cidades da Liga Hanseática, expõe o poderio econômico e político da burguesia local.
Completamente destruída em 1942 após bombardeio dos aliados, ela foi reerguida a partir do projeto original para se estabelecer como destino do turismo literário.
“A casa é um símbolo do trabalho de Thomas Mann, por Buddenbrooks e pela literatura alemã do século 20. É um local que celebra a memória da cultura nacional. Para Mann, o número 4 da Mengstrasse era ‘o símbolo da tradição’ em que foi construída sua obra. Um endereço comparável à Weimar de Goethe”, explicou o curador.
Retrato de uma cidade
Prêmio Nobel de Literatura em 1929, Mann lapidou durante três anos a austera narrativa do que seria seu primeiro livro. Era bastante jovem. Tinha apenas 26 anos e uma inesperada carreira literária pela frente, já que não acreditava no sucesso de Os Buddenbrooks. A obra, em suas mais de 600 páginas, foi recebida pelo editor da casa Fischer Verlag com otimismo, desde que fosse cortada quase que pela metade.
Mann negou a interferência no texto, em seguida publicado na íntegra, e provou ter razão. A obra, que lhe garantiu o Nobel, é hoje considerada um marco do naturalismo e realismo na Alemanha, com sua escrita cadenciada e minuciosa, dividida em capítulos concisos. O autor faz claras referências à infância vivida em Lübeck, mas o nome da cidade nunca é mencionado no texto. Apenas seus pontos de referência.
Estão presentes a Mengstrasse, o rio Trave, a Igreja Luterana de Santa Maria, o Mercado Central, a medieval e impressionante Porta de Holsten, as ruelas estreitas repletas de passagens minúsculas e os verões em Travemünde, cidade à beira do Mar Báltico, hoje sede de um dos principais portos que ligam o norte da Alemanha à Escandinávia. Tanto Lübeck como Travmünde valem a viagem. Elas capturam o espírito empreendedor do norte da Alemanha.
Influências
O retrato decadência da família Buddenbrook, que vê a derrocada de seus negócios entre 1835 e 1877, atravessando a revolução de 1848, a guerra Austro-Prussiana e a ascensão do Império Germânico, recebeu doses generosas da influência do filósofo Arthur Schopenhauer, leitura formativa do jovem Thomas Mann.
Um livro em especial, O Mundo Como Vontade e Representação, delineou os contornos psicológicos dos personagens e seus dilemas de felicidade aliados à saúde financeira da empresa familiar, resultado da devoção à ética protestante. Curiosamente, apenas quatro anos depois de Os Buddenbrooks chegar às estantes, o sociólogo Max Weber publicaria A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
As obras do filósofo Friedrich Nietzsche e do compositor Richard Wagner, ícones da cultura alemã, também são frequentemente associadas a Os Buddenbrooks. Para o curador Holger Pils, a obra de Thomas Mann funcionou como uma representação artística do pensamento de Nietzsche e de Wagner.
“Nesse aspecto, o romance condensa uma parte importante na cultura alemã do século 19. Thomas Mann se tornou, por isso, um dos principais mediadores desses intelectuais no século 20. Sem ele, os efeitos de sua música e filosofia seriam muito diferentes hoje. Devemos ressaltar que Mann os interpreta sob a luz do humanismo – e assim salvou-os da interpretação unicamente nacionalista”, acredita Pils.
Serviço:
Buddenbrookhaus
Mengstraße 4, Lübeck
Entrada: 6 euros (R$ 18)
www.buddebrookhaus.de
De segunda a domingo das 10h às 18h
Lübeck fica a duas horas e meia de trem a partir de Berlim (284 km).
Os serviços entre as duas cidades são frequentes.