“Se a embarcação avançar, será bombardeada”, escutou o capitão do Lago Lakar, que se dirigia rumo às Malvinas, naquele ano de 1983. A guerra com o Reino Unido pela soberania das ilhas havia terminado e o navio não levava soldados, mas a viagem estava sendo realizada sem autorização britânica ou intermediação de nenhum organismo internacional.
A incerteza a bordo era grande, mas a necessidade daqueles 50 passageiros argentinos em luto de chegar às ilhas pelas quais lutaram e morreram seus familiares fazia com que o medo fosse sublimado. Foram chamados de loucos e irresponsáveis, mas o objetivo não era iniciar um conflito, era somente chegar, conhecer as ilhas onde haviam morrido e estar perto dos filhos, maridos ou irmãos.
Decidiram seguir viagem, apesar dos comunicados à tripulação de que o governo argentino não se responsabilizava pela segurança do navio e de que a embaixada inglesa considerava a empreitada como uma “provocação”, já que as relações diplomáticas com a Argentina foram interrompidas após a guerra.
Agência Efe
Detalhe do cemitério de Darwin, local onde está enterrada parte dos 649 argentinos mortos na Guerra das Malvinas
O mau tempo, no entanto, se encarregou de impedir um mal maior: a ferocidade das ondas durante um forte temporal quase virou a embarcação, e os tripulantes decidiram voltar ao continente. Na impossibilidade de pisar no solo localizado a 550 quilômetros da Argentina e 14.400 quilômetros do Reino Unido, reivindicado como pátrio por ambos os países, os passageiros jogaram suas oferendas em alto mar.
A viagem não foi concretizada, mas a ideia permaneceu: ir ao local onde estava enterrada parte dos 649 argentinos que morreram durante os 74 dias de guerra com a coroa britânica no ano anterior. Os restos mortais dos combatentes, antes espalhados pelos 90 quilômetros do frente de batalha, haviam sido reunidos no chamado cemitério de Darwin, após algumas tentativas britânicas de transladar os corpos à Argentina.
“Como os argentinos tinham sido enterrados no mesmo lugar em que foram mortos, este solo passa a ter um caráter inviolável, segundo a legislação internacional e a mentalidade britânica. Então é claro que os ingleses se incomodavam com o fato de que quase toda a ilha estivesse ocupada simbolicamente pelos argentinos, que se espalhavam por lá”, explica ao Opera Mundi César Trejo, veterano da guerra e representante da Comissão de Familiares dos Caídos nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul.
Frente à pergunta de uma jornalista sobre a “repatriação” dos corpos – termo britânico utilizado para definir o desejado envio dos restos mortais dos combatentes à Argentina – uma mãe respondeu: “como você me faz essa pergunta se eles estão em sua pátria?”
Arquivo pessoal/Delmira de Cao
Sem anuência do governo argentino ou dos familiares, que decidiram que os falecidos “descansariam” no local pelo qual lutaram, os corpos foram reunidos. O Reino Unido apelou à fiscalização do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) para a exumação dos corpos e a instalação no cemitério construído na parte traseira da ilha. “Muitas tumbas ficaram sem nome, porque cadáveres já identificados pela parte argentina não foram identificados pelos britânicos”, conta Trejo.
Em 1991, os familiares finalmente conseguiram a intermediação da Cruz Vermelha e do governo argentino para uma visita ao cemitério de Darwin. As condições estipuladas para a viagem, segundo a comissão, foram excessivamente restritas: placas de homenagem, virgens com água benta no interior, bandeiras argentinas, e outros itens que seriam deixados nas tumbas, até então só adornadas com cruzes brancas, foram barrados no aeroporto.
“Partimos às nove da manhã. O voo durou aproximadamente duas horas e meia e quando estávamos chegando, nos pediram para que fechássemos as janelas. Não podíamos ver nada, nem tirar fotos”, relata Salvador Antonio Vargas, pai de um recruta morto na guerra. O grupo de familiares foi “escoltado” durante todo o dia em que permaneceu nas ilhas.
Marcas argentinas
Anos mais tarde, a recepção aumentou e na primeira vez que puderam abrir as janelas do avião, todos os passageiros choraram ao ver como o terreno verde das ilhas era delimitado pelo oceano azul. Nas novas viagens, que duravam até uma semana, percorreram pontos onde permaneciam restos de trincheira, itens de batalha e pertences pessoais de soldados, aproveitando para coletar terra, areia e água dos de lugares onde seus parentes combateram os britânicos.
O aspecto do cemitério, no entanto, provocava desconforto. Era uma região descampada e os visitantes oravam sobre tumbas onde o único símbolo religioso eram as longas filas de cruzes brancas das tumbas que abrigavam os restos mortais dos soldados. Chegou-se então à conclusão de que se deveria haver uma homenagem aos mortos, um símbolo da religião predominante na Argentina e alguma proteção do vento frio que, intenso, castigava os visitantes.
Após cinco anos de negociação com o governo britânico, que administra as ilhas, a comissão viu um monumento, projetado por dois arquitetos argentinos, ao redor do cemitério, que ostentava o nome dos 649 combatentes mortos durante a guerra e uma virgem que passou por uma procissão por todas as províncias do país.
Questões abertas
Recentemente, uma polêmica foi levantada pelo pedido de exumação dos corpos, feito por familiares ligados a um centro de ex-combatentes, para a realização de exames de DNA que comprovassem a identidade dos enterrados no cemitério de Darwin. A proposta é motivo de lágrimas entre muitos integrantes da comissão: “ninguém vai mexer no corpo do meu filho para identificar outro. Já sabemos que os 649 morreram”, queixa-se um deles.
As esperanças alimentadas sobre a possível sobrevivência de combatentes é compreensível. Houve casos em que a notícia da morte foi recebida pelas famílias através de entrevistas televisivas com regressados das ilhas, que contavam onde atuaram, com qual oficial e em qual tropa. Relatos transmitidos com a utilização de verbos no passado para se referir a soldados eram motivo de desespero e em alguns casos somente objetos pessoais trazidos por companheiros de batalha foram a prova decisiva da morte de um combatente.
“Passei os 74 dias da guerra na igreja, ajoelhada dia, tarde e noite, rezando o rosário”, lembra Delmira de Cao, presidente da Comissão de Familiares, que recebeu um falso alarme de que o filho Julio teria voltado ao continente e estaria internado em um quartel, ainda durante a guerra. “Mas ele não estava na lista de feridos”, disse ela, que como muitos outros familiares, mantinha a esperança do regresso, com vida, do filho.
Arquivo pessoal/Delmira de Cao
“Passei os 74 dias da guerra na igreja, ajoelhada dia, tarde e noite, rezando o rosário”, lembra Delmira (na foto, com a neta Julia)
Em seu livro Malvinas: histórias breves e sentimentos, Vargas conta como ao longo do tempo foi reconstruindo, por meio de relatos fragmentados de companheiros de seu filho, o episódio que interrompeu a vida de Alejandro Pedro. Ao lado de outros soldados, “Ale” foi atingido por uma mina anti-tanques após entrar em uma casa vazia de um habitante das ilhas, em busca de alimentos e casacos para se proteger do frio. Anos depois, Vargas voltou às ilhas para pedir desculpas aos descendentes do morador que teve um pulôver roubado.
O relato de sobreviventes que atuaram ao lado de falecidos foi essencial para que muitos dos familiares pudessem realmente acreditar na perda que acabavam de sofrer. Em muitos casos, as versões oficiais durante e após a guerra eram contraditórias e pouco precisa em relação às mortes. Pais, irmãos e esposas recorriam às informações diárias publicadas nos jornais na esperança de encontrar alguma referência sobre seus seres queridos.
Quando Delmira finalmente recebeu a versão oficial do falecimento do filho, foi através de um capitão de relato hesitante. “Exigi saber se ele tinha sido enterrado, se ficou jogado, se foi socorrido. Ele me disse que era muito difícil contar o que aconteceu a uma mãe e eu disse que não importava quão dura fosse a verdade, que queria saber de tudo”, relata.
Professor de primário em bairros carentes e com uma mulher grávida, Julio foi às ilhas apesar de muita resistência dos pais. “Como você acha que eu poderia dar aulas, falar aos meus alunos sobre a pátria, sobre San Martín e Belgrano, se me esconder embaixo da cama e não defender minha bandeira?”, disse o jovem à mãe, dando fim às discussões.
Arquivo pessoal/Delmira de Cao
Nos dias de batalha, o soldado enviou à diretora da escola uma carta, onde desabafou sobre as circunstâncias da guerra: “Vivemos em poços de 1 x 2 metros aproximadamente (poços de raposa), de dois em dois soldados, a umidade da terra é nossa maior companheira”, escreveu, explicitando aspectos e combates que preferiu não relatar à família para evitar preocupações.
Em uma mensagem que foi lida aos alunos, conta: “(…) logo vamos estar juntos novamente, fechar os olhos e vamos a subir no nosso imenso condor e vamos dizer-lhe que leve a todos nós para o país dos contos, que como vocês sabem, fica muito perto das Malvinas. E agora que o professor conhece muito bem as ilhas, não vamos nos perder.”. Julio foi atingido nas costas por um projétil que “o partiu no meio” quando descia do Monte Logdon, no dia 14 de junho.
Heróis x vítimas
Entre os familiares de soldados mortos em combate, é difícil encontrar algum que concorde com a hipótese de que a guerra foi apenas mais um episódio da ditadura militar argentina (1976-1983), que se via imersa em uma crise de apoio popular quando as tropas do país desembarcaram nas ilhas do Atlântico Sul no dia 2 de abril, há 30 anos, içando a bandeira pátria.
“Muitos soldados eram críticos ao regime, mas se apresentaram para ir à guerra. No dia em que reconquistamos as ilhas e uma multidão lotou a Praça de Maio, muita gente descontente com o governo gritava ao general Leopoldo Galtieri que ele era um bêbado, que não podia estar discursando na sacada de Perón. Era a comemoração pelas tropas que estavam lá, não ao regime”, diz Delmira, sobre os insultos ao presidente da ditadura em 1982, malfadado por sua embriaguez.
Como exemplo de que os argentinos apoiaram espontânea e massivamente a reconquista das Malvinas, mencionam os milhares que se candidataram para ir à guerra, a iniciativa de milhares de pessoas de escrever cartas de apoio aos soldados e de doar dinheiro, jóias, alimentos e cachecóis, luvas, pulôveres e gorros tricotados pessoalmente para que os combatentes enfrentassem as dificuldades nas ilhas.
A mobilização foi tamanha que a junta militar teve que emitir um comunicado, em 1º de maio, pedindo à população para que suspendesse o envio de doações, já que “a capacidade de armazenamento se fazia dificultosa”, por superar a capacidade de carga dos transportes disponíveis. A arrecadação das doações foi de 54 milhões de dólares, quase o dobro do utilizado para o envio das tropas, segundo o então ministro da Fazenda.
“A história da guerra deve ser contada por seus protagonistas”, dizem os veteranos, que frequentemente afirmam que a Argentina passou por um processo de “desmalvinização” no pós-guerra. Segundo ele, isso foi alimentado por um discurso ideológico que deixa de lado o reconhecimento aos combatentes e a reivindicação pelas ilhas, dando lugar a uma aventura militar promovida pela ditadura, que maltrata e tortura jovens de 17 anos, que são seus próprios soldados.
“Em algum momento tem que se reivindicar a luta pelas Malvinas e isso requer a ‘remalvinização’. E isso também implica em não mais tratar os combatentes como vítimas, e sim como heróis nacionais. A guerra não se deveu somente a um bêbado.”, salienta Trejo.
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