Fazia tempo que não se via tanta tensão na Argentina, até mesmo um pouco de histeria, por causa da definição das listas de candidatos para uma eleição legislativa como a que será realizada em 28 de junho. Esta não é uma eleição qualquer. Está em jogo, em princípio, o controle das câmaras legislativas, mas sobretudo o futuro do modelo econômico aplicado nos últimos seis anos pelo casal Kirchner, primeiro Néstor e agora Cristina.
A questão era descobrir se o ex-presidente finalmente apresentaria a candidatura a deputado federal ou havia simplesmente lançado um balão de ensaio a fim de medir, pelas pesquisas, seu nível de aceitação e, portanto, o apoio ao governo liderado por sua mulher.
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As duas hipóteses eram verdadeiras. O casal Kirchner está ciente da queda de popularidade que vem sofrendo há pouco mais de um ano, desde quando tentou aplicar, por meio de uma lei, impostos às exportações agropecuárias, apresentados como uma maneira de impulsionar a distribuição da riqueza no país. Todo o espectro político opositor, acompanhado pelos meios de comunicação privados, se opôs e obteve a reprovação parlamentar graças ao que os governantes descrevem como “traição de Julio Cobos”, o vice-presidente que votou contra a proposta do próprio governo.
Essa derrota legislativa e a consequente debilidade política do governo de Cristina anteciparam a luta pela capitalização da liderança da oposição e, dentro do Partido Justicialista, a disputa pela posição de herdeiro do que já é chamado de pós-kirchnerismo.
Os Kirchner não se rendem. Por um lado, procuram manter os índices macroeconômicos favoráveis que dão conta do modelo econômico de acúmulo e distribuição, permitindo sustentar o nível de emprego, a arrecadação fiscal e a obra pública. Além disso, idealizaram o que a oposição batizou de candidaturas testemunhais. Trata-se de colocar figuras de referência do kirchnerismo no topo das listas, não importando se estiveram à frente de um município, província ou ministério nacional.
Assim, Néstor Kirchner se inscreveu como o primeiro candidato a deputado federal pela província de Buenos Aires, o distrito eleitoral mais importante do país, acompanhado pelo atual governador provincial, Daniel Scioli, e pelo chefe do gabinete de ministros de Cristina, Sergio Massa. Mais de 40 prefeitos da Frente para a Vitória (FPV) são candidatos a vereadores. A decisão de concentrar os esforços nesse distrito faz sentido: é o território mais populoso e seu controle político permite que qualquer governo nacional vislumbre um futuro mais cômodo.
Tudo ou nada
Os Kirchner, ou seja, o governo, deixaram claro o objetivo ao colocar suas principais referências na disputa de cargos legislativos: respalda-se ou não o modelo, logo o governo. Eles estão tão convencidos disso que tanto a presidente quanto Kirchner disseram publicamente que, se o governo perder o controle de ambas as câmaras legislativas, o país retrocederá a 2001, o ano da pior crise política, social e econômica vivida pela Argentina, quando o modelo neoliberal ruiu. Soa como exagero, mas também faz jus ao estilo de “tudo ou nada” dos Kirchner.
Já a oposição busca há um ano espaços de confluência para ganhar poder, enfraquecer o governo e até mesmo provocar a queda antecipada dos Kirchner. Em todo caso, o denominador comum das alianças opositoras é a tendência centro-direitista.
Por exemplo, o Acordo Cívico e Social, liderado por Elisa Carrió, ex-integrante da União Cívica Radical (UCR), acabou se aliando aos velhos companheiros de luta do partido e a outro ex-membro da agremiação, o atual vice-presidente Julio Cobos, licenciado para ser opositor. A essa tríade de ex-radicais, radicais atuais e radicais prestes a retornar, somam-se alguns peronistas que integraram o trágico governo de Fernando de la Rúa (1999-2001) e têm bases fortes na capital federal, no interior da província de Buenos Aires e em Mendoza, o distrito onde Cobos dá as cartas.
Este setor não só se opôs a todas as iniciativas do governo federal, como também tende a abrir as portas ao Fundo Monetário Internacional e suas receitas, apontadas como causa da maior tragédia argentina. Eles não querem continuar os julgamentos dos repressores da ditadura dos anos 1960, rechaçaram a nacionalização das empresas privatizadas na década menemista e veem com bons olhos uma desvalorização do peso argentino para enfrentar a crise internacional.
Teste para os conservadores
A capital federal, ou Cidade Autônoma de Buenos Aires, é governada há pouco mais de um ano e meio por uma força de centro-direita conhecida como PRO, cuja liderança visível é o chefe de governo portenho Mauricio Macri. Desde o início de 2009, ele apoia dirigentes peronistas que se afastaram dos Kirchner, no que ficou conhecido como Pró-Peronismo. Um acordo eleitoral que, além de Macri, inclui o ex-governador de Buenos Aires Felipe Solá (até há pouco tempo aliado dos K) e o multimilionário autodenominado peronista Francisco de Narvaez.
Esse espaço conservador tem como eixo principal o grupo dos setores peronistas mais identificados com a direita e que povoaram o governo de Carlos Menem e, depois, o de Eduardo Duhalde. O pleito de junho é estratégico para o grupo, pois o resultado lhe permitirá medir suas possibilidades para a eleição presidencial de 2011. Esta é a preocupação de Macri e Solá. De Narváez, por seu lado, contenta-se em almejar o governo da província de Buenos Aires, pois o fato de ele ter nascido na Colômbia o impede de disputar a Casa Rosada. O grupo acredita que um bom desempenho em junho permitirá aglutinar todo o peronismo, que rapidamente fugirá do kirchnerismo se este perder as eleições legislativas.
É certo que existem muitos dirigentes peronistas de primeiro escalão (governadores e mesmo prefeitos) para os quais o tempo dos Kirchner está chegando ao fim. Sem dúvida, suas análises são mais pragmáticas que ideológicas e eles se sentem muito mais à vontade com políticas neoliberais do que com o progressismo que os Kirchner instalaram em seus respectivos governos. Para eles, existe um sério inconveniente. Se deixarem o governo, não terão muitos elementos para justificar o abandono de uma administração que lhes permitiu ter índices de emprego e produção mais aceitáveis, levando em conta a situação da Argentina em 2001. Mas tantos anos de neoliberalismo parecem ter limado aquelas verdades peronistas segundo as quais a felicidade do povo era o objetivo principal, que consistia em justiça social, trabalho digno e soberania nacional.
Os monopólios da mídia jogarão, para usar termos futebolísticos, sua própria final do campeonato mundial. Resistentes a tudo que venha do governo kirchnerista, ainda mais depois que este passou a considerar a nova lei para regular a comunicação audiovisual, eles se lançaram numa cobertura exagerada de toda atividade realizada pelos partidos de oposição. O que fica de fora da programação é o que realmente deveria importar ou ser discutido: quais são os projetos e ideias em disputa nas próximas eleições.
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*Felipe Yapur é jornalista.
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