As mudanças políticas na América Latina pouco afetaram o equilíbrio de forças no Haiti. Os Estados Unidos continuam sendo a potência mais relevante no país, vista com mais simpatia depois da eleição de Barack Obama. Nessa terceira e última parte da entrevista, o economista Federico Villalpando ressalta a participação histórica do Haiti no processo que levou pela primeira vez um negro à Casa Branca e ressalta a importância da integração regional para o desenvolvimento da ilha.
Existe no Haiti esperança em relação à eleição de um presidente negro, Barack Obama, na Casa Branca?
Se fosse haitiano, Obama não seria considerado negro, mas mulato, com todas as implicações sociais e culturais. Apesar disso, os haitianos fazem da eleição dele a mesma leitura que no resto do mundo: os Estados Unidos têm um presidente negro. Hoje em dia, os haitianos são muito felizes e orgulhosos de Obama. Em Porto Príncipe, vi o retrato dele pintado nos ônibus e encontrei na rua várias pessoas com camisas, gravatas e bonés com fotos de Obama.
A política externa dos Estados Unidos pode afetar o Haiti em pelo menos cinco aspectos, deixando de lado a questão do relacionamento com os membros do Conselho de Segurança, que têm poder de veto à permanência da Minustah. São eles: a relação com Cuba, a política de migração, a luta contra o tráfico de drogas, a integração comercial com a região e a gestão da rota do Canal do Panamá. Não acho que o Haiti seja uma variável muito relevante nestas questões, mas acredito que qualquer mudança em qualquer uma delas teria um impacto sobre o país, positivo ou negativo, dependendo do caso.
No que diz respeito à ajuda ao desenvolvimento que os Estados Unidos fornecem no Haiti, é preciso esclarecer que há formas muito diferentes – ajuda oficial, acordos comerciais preferenciais, apoios técnicos, apoio às ONGs, iniciativa de particulares com apoio do governo etc. O conjunto é muito importante para o país. Não acredito que haja qualquer mudança fundamental nesse nível. No máximo, haverá uma redução de verbas devido à crise, ou, ao contrário, um aumento da ajuda, se a crise chegar a desestabilizar a ilha.
Gostaria de voltar um momento na questão do peso cultural e social da posse de Obama para a América Latina, e a participação histórica do Haiti neste processo. Acho que ainda não percebemos a profundidade do impacto desse evento em um continente onde a discriminação tem sido historicamente a espinha dorsal da sociedade. A revolução haitiana foi o farol da liberdade para os negros da região. Todos os países que tiveram escravidão nas Américas têm uma dívida histórica com o Haiti. Durante a guerra civil nos EUA, o Haiti enviou tropas para apoiar a causa do Norte. Coincidência ou não, o slogan de Obama – “Sim, nós podemos” – se traduz no Haiti como “Nou Kapab” (nós podemos, somos capazes) e foi um dos gritos da revolução da libertação. Nesse sentido, Obama deve uma parte de sua vitória aos haitianos.
Uma integração regional maior pode ajudar no desenvolvimento do país?
Ao contrário da América do Sul, a América Central e o Caribe são caracterizados por uma multidão de pequenos Estados, com uma enorme pressão demográfica sobre os recursos naturais, importantes diásporas e uma proximidade ao canal de Panamá. Estes países são historicamente vítimas da ingerência das potências vizinhas. Não é fácil construir uma integração regional nesse cenário. Além disso, a fraqueza dos Estados na região – especialmente no Haiti – faz com que qualquer negociação com o resto do mundo seja feita com base em dramáticas assimetrias econômicas e políticas.
O primeiro passo de uma integração do Haiti com o resto do mundo tem que ser uma intensa cooperação com a República Dominicana. Para melhor ou para pior, dominicanos e haitianos partilham a mesma terra. Esta realidade deve ser aceita e aproveitada para benefício mútuo. A relação do Haiti com os EUA é vital e estruturalmente assimétrica. O Haiti precisa encontrar formas de interagir com seu grande vizinho e com a diáspora que vive ali. As relações com o resto do mundo (Cuba, Venezuela, o resto do Caribe, América Latina, Canadá, China, Taiwan, União Européia etc.) já existem e oferecem um impressionante potencial de oportunidades para o país. Tem muitos exemplos para serem estudados sobre integração: Costa Rica, Cafta-DR (tratado de livre-comércio entre EUA, América Central e República Dominicana), a diplomacia cubana, a Commonwealth e a Caricom (Comunidade do Caribe). Os funcionários haitianos são hábeis, embora eu duvide da capacidade não só do Haiti, mas de muitos países da região de transmitir os benefícios da integração aos seus povos.
Como mudou o equilíbrio das forças no Haiti entre os poderes tradicionais (França, EUA) e os emergentes (Venezuela, Brasil)?
Não acho que houve uma mudança no equilíbrio de forças no Haiti. Apesar do fato de que não comandam a força de paz no país, os Estados Unidos continuam a ser a potência dominante e continuarão sendo. Diria mais: é justamente a importância dos EUA no país que incentiva os outros paises a buscar interferir na relação de maneira tão intensa. O peso dos EUA não é apenas econômico ou diplomático. Seu magnetismo cultural é maior que o da França, apesar de partilhar com este país uma língua e um passado – traumático, é verdade – comuns.
O caso do Canadá é interessante. Este país tem uma longa presença no Haiti, que se iniciou no passado com a participação de missões católicas. O Canadá, como a França, tem um patrimônio cultural comum. Mas, como os EUA, conseguiu uma interação humana que se manifesta por meio de uma diáspora importante e dinâmica. Vale lembrar que Michaëlle Jean, que é nada menos do que a Governadora Geral do Canadá, é nativa da ilha. O Canadá tem também um peso muito significativo na economia local. Como os EUA, é visto como um parceiro importante, mas sem o peso simbólico do imperialismo – os EUA intervieram várias vezes na região e ocuparam o Haiti de 1915 a 1934.
Venezuela e França atuam para preservar uma presença na região, que é antiga e vai além da conjuntura – o preço elevado do barril de petróleo, por exemplo – e do momento político, tal como relações mais ou menos tensas com os EUA.
Se bem que a presença do Brasil também tem poderosos fundamentos históricos, como a raiz africana e a pertença do norte do Brasil ao “Extremo Oriente” do Caribe. Acho que tem mais a ver com a vontade de uma potência emergente de estar presente na zona mais conflituosa de sua região. Há um ponto que, na minha opinião, merece ser destacado: Brasil, Cuba, Haiti e Venezuela compartilham uma condição de países do “Sul”, que foram todos beneficiários do sistema internacional de ajuda ao desenvolvimento. Isto cria um desejo de oferecer algo diferente ao Haiti, tanto na prática quanto na forma. O potencial que oferece a cooperação Sul-Sul e a diplomacia Sul-Sul ainda não foi totalmente explorado. É uma oportunidade que poderia se tornar um fato histórico.
Será que não há saída para o Haiti?
Um estrangeiro que chega ao Haiti encontra um quadro desolador e, muitas vezes, acaba produzindo reflexões sobre a incapacidade do país de progredir. Já aconteceu comigo, é uma postura intelectual inaceitável. Já disse, no começo da entrevista, que o povo haitiano era pacífico, honesto, dinâmico, criativo, trabalhador e alegre. Durante os últimos anos de relativa paz, a sociedade haitiana deu sinais de recuperação importantes. Acho que, com a paz, todas as condições para o desenvolvimento estão presentes. No entanto, temos que ser realistas e aceitar que o caminho é longo. Os haitianos têm anos à frente de penúrias e injustiças. Já agora, a crise internacional está reduzindo as remessas dos emigrantes e a ajuda externa. Se juntarmos isso à precária situação alimentar no país, temos todos os ingredientes para um 2009 e um 2010 complicados.
Tentando ir além da análise conjuntural da situação de emergência no Haiti, eu faria as seguintes reflexões sobre o que se precisa para o desenvolvimento.
Primeiro, num país onde há muitos mais pobres do que ricos, a solução não passa somente por políticas para os pobres. Tem que estudar os motivos pelos quais a riqueza é concentrada em poucas mãos e colocar políticas fiscais progressivas, acordos salariais dignos e políticas de redistribuição. Precisa-se também incentivar a produção com maior valor agregado e novos empreendimentos, para capacitar as pessoas mais vulneráveis da cadeia de trabalho. Há de se ter instituições confiáveis e legítimas para resolver os conflitos trabalhistas. A história mostra que tais políticas requerem muita serenidade, maturidade política e generosidade. A história mostra também que o resultado sempre – repito, sempre – vale a pena, para todos.
Segundo. O Haiti é um país muito criativo, com um pensamento político e econômico próprio e capacidade de adaptar idéias estrangeiras à realidade local. Hoje, a massa crítica de um pensamento nacional está seriamente afetada. Por um lado, a maioria da população é jovem, ou seja, não conheceu o regime Duvalier e eram crianças na época do primeiro governo de Aristide, e tem baixas escolaridade e expectativa de vida. Além disso, para sobreviver, uma parte muito importante da classe média e dos intelectuais emigra ou não encontra um espaço no debate. Para conceber e aplicar políticas tais como as mencionadas acima, falta uma massa crítica de cidadãos formados e democráticos.
Como você imagina o Haiti no futuro, daqui a 30 anos?
Vamos ser otimistas! Eu quero imaginar o Haiti com as seguintes características. Uma coabitação pacífica das forças políticas, com transições de governo ordenadas. Um mundo de empresários e uma administração pública com canais de comunicação fluidos e capacidade de proporcionar empregos dignos às classes médias locais. Um sistema de alimentação com um mercado interno, pouca especulação, fluxos de importações estáveis e uma agricultura nacional que contenha o êxodo rural. Uma pequena indústria e um setor turístico capaz de deixar no país um capital de conhecimento dinâmico e durável. Um sistema de educação que abrange toda a população e oferece a todos os cidadãos os conhecimentos básicos para viver plenamente como cidadãos – compreender um contrato, compreender os direitos e as obrigações civis, poder preencher um formulário, conhecer os canais de acesso à justiça, etc. Uma integração mutuamente conveniente com os vizinhos cubanos e dominicanos.
O Haiti é um país que conseguiu preservar a sua independência e identidade, apesar de ter sofrido as piores calamidades da América (escravidão, exploração, colonização, isolamento, desprezo, racismo). Ele merece um futuro melhor.
Parte 1: Um país privado de forças criativas e produtivas
Parte 2: Haiti não consegue se desenvolver sem ajuda externa
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