“Marolinha” ou “tsunami”? Até o último trimestre de 2008, a América Latina alimentava a esperança de passar incólume pela crise econômica que atingia os Estados Unidos e a União Europeia. Havia um certo distanciamento entre os países emergentes, que continuavam a crescer em sua maioria, e as nações mais industrializadas, que mergulhavam na recessão. A queda do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, e o subsequente desaparecimento do crédito, acabou com essa ilusão.
A América Latina foi a última região a entrar na crise, mas o golpe não foi pequeno. Após seis anos de crescimento contínuo, o grupo de países deve apresentar um recuo de 1,9% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2009. O Brasil, que crescia ao ritmo de 6% em 2008, teve queda de 3,9% no último trimestre do ano. A economia chilena contraiu 4,5% no segundo trimestre de 2009, o que fez com que o país entrasse oficialmente na primeira recessão desde 1999.
Motor do crescimento durante a atual década, o comércio exterior foi duramente afetado. As exportações da região devem apresentar redução de 13% este ano, segundo estimativa da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), braço econômico das Nações Unidas na região. A retração é atribuída ao encolhimento da demanda, à queda dos preços de matérias-primas produzidas na região e ao aperto no mercado de crédito. Segundo a Cepal, seria o pior resultado em 72 anos. Paralelamente, as remessas contraíram cerca de 10% entre o último trimestre de 2008 e o primeiro de 2009.
Os efeitos sociais da crise não demoraram a abalar a população da região. Desde o começo de 2008 até o primeiro trimestre de 2009 mais de um milhão de pessoas ficaram sem emprego nas zonas urbanas. A taxa de desemprego deveria passar de 7,4% em 2008 para cerca de 9% este ano, deixando mais de três milhões de pessoas sem trabalho. Isso sem contabilizar a expansão do trabalho informal, que dificulta a saída da pobreza.
Rápida melhora
Mas enquanto os países ricos parecem ainda experimentar uma deterioração do quadro econômico, vários índices apontam uma recuperação rápida na América Latina, fazendo com que provavelmente a região seja a primeira a sair da crise. A Fundação Getúlio Vargas acabou de publicar, em colaboração com o instituto de pesquisa econômica da Universidade de Munich (IFO), um informe sobre o clima econômico da região.
O trabalho mostra uma melhora das expectativas dos agentes econômicos no Peru, Brasil, Chile e Colômbia. “No caso do Brasil, se as expectativas se confirmarem, o país pode passar para a fase de expansão já na próxima sondagem”, acredita Lia Valls, coordenadora da pesquisa para a Fundação Getúlio Vargas. Os números do PIB divulgados nesta semana pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) confirmam que a economia brasileira cresceu 1,9% no segundo trimestre deste ano na comparação com o primeiro trimestre, o que confirma que o país saiu da recessão técnica.
O quadro positivo se estende à maioria dos países da região, exceto na Venezuela, onde a situação política transformou os empresários em adversários do governo.
A primeira explicação desta melhora tão rápida vem da recuperação das exportações de matérias-primas, as chamadas commodities. Os preços do cobre, soja, minério de ferro e do petróleo aumentaram desde o começo do ano e subiram ainda mais desde abril, puxados pela demanda asiática. Na China, o pacote fiscal do governo começa a surtir efeitos e já há previsões de que a economia irá crescer 7,5% este ano.
Isso provocou uma mudança estrutural nos destinos dos produtos latino-americanos, como mostra o exame do comércio exterior brasileiro. Enquanto as vendas para Estados Unidos caíram 43%, para a União Européia, 27,2% e para o Mercosul, 40% durante os primeiros seis meses do ano em relação ao mesmo período em 2008. Na Ásia, único mercado onde foi registrado crescimento, houve alta de 15,8%. Sendo assim, o continente passou a ser o destino de 27% dos produtos exportados pelo Brasil, com destaque para a China, que em março se tornou o principal cliente do Brasil, ultrapassando os Estados Unidos.
O apetite pelas matérias-primas explica também a boa resistência dos investimentos estrangeiros diretos, em comparação com outras regiões do mundo. Em 2009, os fluxos de investimentos na América Latina e no Caribe chegaram a 140 bilhões de dólares, em alta de 9% em relação a 2007, enquanto a tendência mundial era de uma diminuição de 15% – ainda mais marcada nos países mais ricos (-25%). Segundo a Cepal, 80% destes fundos foram para empresas de matérias-primas no Brasil. No Chile e na Colômbia, a quase totalidade foi investida nas mineradoras.
Esta recuperação já começou a se refletir nos mercados financeiros. Em 2008, quando a crise apertou, os investidores venderam as ações de todas as bolsas sem muita discriminação, como provaram as fortes quedas dos índices de forma geral. Desde o final do ano passado, as bolsas latino-americanas são as mais dinâmicas. A melhor recuperação é da bolsa do Chile. Mesmo assim, a alta não conseguiu ainda borrar a crise. Desde o seu nível máximo, em julho de 2007, até a sua mínima, em outubro do ano passado, ela caiu 40%. No final de agosto, tinha voltado a 7% abaixo do topo histórico, assim como a bolsa da Colômbia.
Macroeconomia
Esta diferenciação feita pelos investidores pode ser explicada pelo exame mais profundo dos fundamentos econômicos. “A crise encontrou a América Latina numa situação muito melhor em matéria macroeconômica que em outras épocas”, analisa Lia Valls. Os países tinham pelo menos seis anos de crescimento interrompido, conseguiram diminuir uma boa parte da dívida publica e acumularam reservas internacionais.
Na Venezuela, por exemplo, as reservas de divisas deveriam permitir ao governo seguir importando durante nove meses, apesar da queda brutal do petróleo. Na Argentina, os 45 bilhões de reservas aparecem como uma garantia para evitar um calote comparável a aquele de 2001.
Mais preparados, os países latino-americanos deram também muito mais espaço a ações do Estado em comparação com as últimas crises, implementando medidas contra-cíclicas fortes, começando pela política monetária. Para facilitar a volta do crédito e manter a demanda interna, todos os países da região entraram em um ciclo de alívio monetário agressivo, com cortes nos juros que vão até 7,5 pontos.
No Chile, a taxa passou de 8,25% em janeiro de 2009 a 0,5% em julho. No México, tradicionalmente ortodoxo, caiu de 8,25% no final de 2008 a 4,5% em agosto, o mesmo nível que na Colômbia, enquanto no Peru atingiu o nível histórico de 1,25%, após a sétima redução consecutiva. No Brasil, a taxa básica Selic foi reduzida para 8,75% anuais. Desde a criação do Comitê de Política Monetária do Banco Central, em 1996, é a primeira vez que os juros reais – descontada a inflação – chegam abaixo de 5% ao ano.
Leia a parte 2 do texto aqui
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