Frente a Aratiri / Flickr
Pepe Mujica comemora ao vencer as eleições para a presidência do Uruguai, em novembro de 2009
Pepe presidente. Dito assim, parece um slogan eleitoral. Mas José Mujica conclui neste 1º de março seu mandato como presidente e é mais Pepe do que jamais foi. Tem meio século na profissão e teve a oportunidade de conhecer e interagir com mandatários dos mais diversos, desde Ronald Reagan até Raúl Alfonsín, passando por Fidel Castro, Mihkail Gorbachev, Lula, François Mitterrand, Sandro Pertini, Michelle Bachelet e Carlos Menen. Mas Pepe não é do mesmo molde; é decididamente outra coisa. O único conhecido que se assemelha em espírito democrático e simplicidade é o argentino Arturo Illia, mas este estava longe do arsenal teórico e da experiência política e vital de Pepe.
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No útlimo dia 11 de fevereiro, às 10 da manhã, chegamos – a jornalista suíça Camilla Landoböe, o fotógrafo Oscar Bonilla, o assessor da entrevista, Federico Fasano Mertens, o diretor de imprensa da presidência do Uruguai, Joaquín Costanzo, e eu – à simples e florida chácara de Pepe, a poucos quilômetros de Montevidéu. O presidente nos recebeu vestindo uma camisa de manga arregaçada e fora da calça de boiadeiro, sapatilhas com cordões meio atados e gorro de beisebol. Sentamos-nos sob uma árvore; ele pega uma garrafa de água térmica e começa a fazer chimarrão para todo o grupo. De vez em quando interrompe para pedir a Bonilla que empreste tabaco e papel para enrolar um fumo.
Mas ainda que essa descrição o sugira, não há nada de pose em Pepe Mujica. Ele respira, transpira, transmite autenticidade, demonstrada em sua vida e sobretudo no que faz, no que diz. Não conheci políticos, menos ainda presidentes, que se expressem com tanta liberdade sobre as limitações e problemas de sua gestão, sobre os próprios partidários e aliados, com uma linguagem que é uma mescla de intelectual profundo e homem da rua. Pepe é um desses raros marxistas que compreenderam o materialismo humanista de Marx e fazem esforços para atualizá-lo. Em todo caso, um homem culto e profundamente sincero. Pode-se estar de acordo ou não com o todo ou a parte do que expressa, mas é impossível não se maravilhar frente a um personagem assim.
Vamos começar pelas questões formais: como lhe chamar? De presidente, senhor Mujica, José…
Pepe… e nos chamamos de “você”.
Obrigado, Pepe. Vamos começar, então. Para um homem como você, que lutou nos anos 70 por mudanças políticas, econômicas e sociais rápidas, definitivas; por uma revolução, e pagou por isso, entre outras coisas com 15 anos de prisão, o que significa, anos depois de todas essas experiências, ser presidente eleito, estar à frente de uma aliança de centro-esquerda, com companheiros que têm ideias distintas e com uma responsabilidade de governo?
Nós homens, como qualquer coisa viva, amamos muito a vida. Então, queríamos um mundo perfeito. Depois, sofremos bastante, mas por falta de velocidade, porque nos pegaram (risos), não porque fomos heróis. Mas então começamos a valorizar outra vez o papel que tem a vida, nada mais e nada menos… Vale a pena lutar para que as pessoas tenham um pouco mais de comida, um teto melhor, mais saúde, uma educação melhor, e que passem todo o seu tempo sobre o planeta da melhor forma possível. Mas nada é mais bonito, mais apreciado que a vida… E isso é assim no capitalismo, foi assim no feudalismo, foi assim para o homem primitivo… e o será no socialismo. Não há nada como a vida… Isso é que aprendemos nesses anos, que a vida é o primeiro valor e, em todo caso, o segundo valor é a sociedade.
Por isso, agora andamos devagar, mas firmes, tentando promover transformações que são relativas; lentas, porque devem ser consensuais; que não são definitivas, porque a única coisa definitiva é a morte…
O que você diz pode ser entendido, traduzido, como uma adaptação à realidade…
As pessoas nunca terminam de se adaptar à realidade, que é tão complexa… É uma forma de ver o mundo… Alguns o veem por meio de uma equação religiosa, outros meramente ideológica… Eu me sinto cada vez mais próximo de velhos filósofos como Sêneca, Epicuro…
Heráclito…
Sim… Claro, há convicções, uma trajetória intelectual à qual uma pessoa não vai renunciar, mas não devemos ser esquemáticos… Penso que o homem, como animal que é, pelo hard drive que temos do lado de dentro, é gregário; não é um felino, é antropologicamente socialista. Em que sentido? Precisa da comunidade para viver; não pode viver isolado, tem uma grande dependência do grupo social. Viveu mais de 90% da existência humana em forma primitiva; não separava o seu do meu. A propriedade, a competição e tudo isso vieram depois. O desenvolvimento da civilização foi formando sua individualidade; a noção acabada de indivíduo monopolizador é moderna, capitalista. Nós somos capitalistas por formação histórica, porque vivemos nesse momento de desenvolvimento da civilização.
Há alguns dias li uma frase sua: “vamos ter guerra até que a natureza nos obrigue a ser civilizados”…
Sim, por esse caminho estamos indo. O capitalismo, como um todo, é contraditório. De um lado estão a injustiça, a desigualdade, as guerras; mas esse egoísmo que leva dentro de si é um motor formidável, que desenvolveu ciência, tecnologia, tudo isso, certo? O capitalismo nos deu muitas chicotadas, mas nos deu quarenta anos adicionais de vida no último século… O que você acha? Agora parece ter dado tudo de si; o lógico é que o socialismo democrático o substitua, mas os tempos da história são longos. O capitalismo se desenvolveu durante três séculos sem democracia política.
Certa vez você disse algo como “não devemos lamentar os problemas; temos de enfrentá-los.”
Sim, a questão é encontrar a maneira…
Justamente, uma vez em um governo como o que você preside, como se resolvem essas contradições?
Vai-se negociando o que é possível, tentando contribuir para que a sociedade seja o mais equitativa possível, intervindo permanentemente com políticas sociais, promovendo a organização dos trabalhadores para que discutam o preço de suas mãos. Porque, definitivamente, o grande elemento distribuidor na sociedade, pelo menos na atual, é o salário. Não é o único, e além disso tem um limite, porque se coloco demais a mão no bolso de quem tem que investir, ele não investe e ao final tenho menos para dividir… Veja o resultado humano e prático que tivéram os experimentos apressados, “definitivos” do socialismo: ao final tiveram menos para dividir.
Também foram experimentos antidemocráticos…
Claro, porque quando tudo é reduzido, você tem de cair na ferocidade repressiva… Mas o pior desse socialismo é a democracia… Você começa a depender não dos produtores, mas dos capatazes… O capitalismo tem os problemas que conhecemos, mas sempre há algo para aprender, até do adversário. É necessário aprender da inteligência, não da estupidez.
Até onde a Frente Ampla avançou e o que falta fazer?
O problema é que temos uma herança, como é normal. A partir da década de 40 – as datas podem ser arbitrárias – a democracia no Uruguai foi perdendo a força; caímos em clientelismos, em utilizar o Estado para colocar muita gente, gente demais, e assim fomos tirando dele sua competitividade. Por um “protecionismo” em relação a quem trabalha, criamos uma categoria de funcionários praticamente intocáveis que têm seu futuro assegurado; entrando no Estado, dentro de quarenta anos se aposentam e ninguém pode tocar neles, faça o que fizerem. O Estado perdeu vigor, e obviamente os sindicalistas defendem essas “conquistas”, e assim se transformaram em defensores do status quo que atava as mãos do Estado… Tocar esse ponto no Uruguai é como fazer uma revolução… Então, ficamos no meio do caminho. A Frente tentou dar vigor para as conquistas sendo menos demagógica, tentando usar e fazer as coisas um pouco melhor, mas temos de transformar o Estado, fazer essa revolução. Temos os instrumentos, mas devemos nos colocar de acordo: além da energia, das comunicações etc., o Estado tem em suas mãos o principal banco do país; 60% do movimento bancário estão nas mãos do Estado e nós [da Frente Ampla], vamos levantando a bandeira “é necessário nacionalizar os bancos”.
Para que nacionalizar os bancos? O banco estadual tem de funcionar “com a cara e coragem”, de tal forma que o banco privado não tenha outro remédio a não ser aceitar as regras do jogo. Esse é um dos desafios que temos pela frente.
Junto com o Chile, e diferentemente da Argentina, no Uruguai os crimes da ditadura dos anos 70 gozaram de uma lei de caducidade, plebiscitada…
Creio que o povo uruguaio teve medo… e com bom humor, em alguma medida, decidiu “engolir os sapos”. Difícil, duro, mas priorizou a tranquilidade.
Mas, depois, a Corte Suprema declarou que alguns aspectos dessa lei de esquecimento, por assim dizer, eram inconstitucionais. Como se lidou com esse assunto no seu governo?
O problema é complexo. Por um lado, os criminosos não vão se autoacusar; por outro, deixaram muito poucas pistas, eu diria que nenhuma, para que a Justiça seja plenamente aplicada e com isso teríamos de lidar por muito tempo. Verdade e justiça podem ser contraditórias e os problemas estão na divisão política e nas brigas, nos ódios que isso gera na sociedade quando se prolonga com o tempo. Veja na Argentina, começaram bem, mas depois foram fazendo uma sujeira tão generalizada e massificada que passaram trinta anos e há pontas soltas por todos os lados… No Uruguai não… Tivemos violência e ditadura, mas as pessoas decidiram esquecê-la, por assim dizer. Veremos como essa questão da Corte Suprema será resolvida institucionalmente.
Por último, falando de justiça e não apenas a respeito dos crimes da ditadura, o Uruguai funciona com um sistema jurídico que está alinhado com o passado, mas não com as mudanças necessárias no presente. Se você, no Uruguai, quiser colocar um imposto sobre a terra, sobre a concentração da terra, o impedem declarando-o inconstitucional. Como em todo mundo, e sempre na história, a jurisprudência foi pensada e instalada pelas classes dominantes, os estratos conservadores. Temos de lidar com isso; não o transformamos [o sistema jurídico]. Nós [da Frente Ampla] há tempos gostaríamos de ter promovido uma reforma constitucional porque se você não muda os instrumentos jurídicos, depois você encontra essas contradições, como um freio formidável. A Justiça, essa senhora que colocam com uma venda nos olhos e uma balança nas mãos… isso não existe, porque a justiça reflete o peso das classes que dominam uma sociedade. Os instrumentos jurídicos estão dentro da história, e a história é uma luta de classes… Tudo está, portanto, influenciado pela política. Creio que não existe ato mais político que uma revolução, e todas as revoluções têm sido fundadoras de direito, fonte de jurisprudência. Ou seja, a classe ou as classes que predominam são as que estabelecem as leis. Isso é o que necessitamos agora, mudanças democráticas, isto é, aprovadas pela maioria; mas, de fundo, que reflitam e, ao mesmo, permitam as mudanças que o Uruguai precisa no presente.
Marx estaria de acordo com você.
Quer dizer, eu estou de acordo com Marx…
Roberto Stuckert Filho / Blog do Planalto
Mujica e Rousseff em encontro em Brasília em junho de 2012
Gostaria de passar para a questão regional, Pepe. O Mercosul, por exemplo, que foi criado em 1989 e ainda não passou de alguns acordos comerciais e aduaneiros, que tampouco funcionam muito bem… O que você acha desses organismos, de seu presente, do que deveriam ser?
Na América do Sul, e em toda a América Latina, temos um grande desafio pela frente. Se não criamos mecanismos que nos integrem aos poucos, que possam nos dar uma presença internacional de peso, vamos continuar como folhas soltas ao vento. É evidente que, no mundo, estão se organizando unidades gigantescas. A China é um Estado plurinacional velhíssimo; a Índia segue a mesma linha. Os Estados Unidos com seu poder e suas necessidades, com o Canadá atrás e o México, com esses dois pássaros na mão, já está de fato transformado em uma unidade. A Europa, com todos os problemas que atravessa no momento, continua com o projeto de formar uma gigantesca unidade. E, se amanhã fracassar, acabará engolida por uma unidade maior.
E o que nós fazemos nesse mundo, um monte de repúblicas isoladas que vêm correndo atrás, insistindo no “projeto nacional”. Nos países determinantes da América Latina, Brasil, Argentina, México, os dirigentes falam e assumem um discurso integracionista, mas de um ponto de vista prático, estão metidos até as tampas nas contradições do Estado nacional. Para fora, para os outros países da região, são conduzidos de acordo com suas tensões internas… Estamos longe de ter uma política de construção. Fizemos um pacto aduaneiro para negociar, ok?… Mas quando há uma contradição interna, pronto, já bloqueiam… Há poucos dias estive em um ato do Partido dos Trabalhadores brasileiro, no qual estavam nada menos que a presidenta Dilma Rousseff e Lula… Escutei atentamente todos os discursos, e em nenhum momento falaram da integração. E não o fazem por maldade; são bons. Cada vez que temos um problema com o Brasil, conversamos e negociamos e o resolvemos, mas a polícia interna e os problemas do Brasil são impostos na agenda… e, então o que estamos fazendo? Criamos organismos, novas instituições, Mercosul, Unasul.
O projeto integrador tem duzentos anos, desde San Martín, Bolívar, [José Gervásio] Artigas [herói nacional do Uruguai], mas os partidos de esquerda têm sido tão torpes que isso não é uma bandeira popular; em nenhuma parte da América Latina há uma manifestação de massas lutando pela integração… Isso apenas tem um verniz de caráter intelectual, mas não está integrado com uma necessidade histórica básica.
Sabem quem são os mais integracionistas? Os países pequenos; por necessidade, porque vamos correndo atrás. A integração precisa de uma liderança, essa liderança se chama Brasil, mas a Argentina teria que acompanhar, e não acompanha porra nenhuma, é mais pelo contrário, é como se a Argentina tivesse retrogradado para uma visão de 1960.
Enquanto tem o vento a favor, a Argentina se esquece da integração, quando as coisas vão bem vai para o outro lado: assim também acontece com o Brasil. Vou te fazer uma confissão: uma vez a presidenta do Brasil me disse: “Ah, Pepe, é necessário ter paciência estratégica com a Argentina…!”
O Brasil suportou tudo dos argentinos, tudo… Mas não quer perdê-los como aliados. A Argentina acaba sendo determinante em tudo. O que a Argentina faz ou não faz incide sobre o rumo que o Brasil toma.
A Dilma disse isso? Ou o Lula?
A Dilma. O Lula pensa igual… E me procuram para que eu me responsabilize pela luta de integração. O Lula diz: “eu não posso, Pepe, não posso porque sou brasileiro”. (…) Há uma forte burguesia paulista, que sem direção política coloniza no lugar de integrar. Fazem um investimento no Uruguai e compram o que nós fizemos no lugar de fundar uma coisa nova. Agora temos 40% dos frigoríficos nas mãos de brasileiros. Vão à Argentina e fazem o mesmo. Isso só faz com que nos desintegremos…
Os argentinos fazem mais um pouco quando podem…
Também, porque isso é natural na voracidade capitalista. Mas politicamente falando… Eu não vou pedir aos burgueses que sejam socialistas.
Mas que sejam bons burgueses…
Claro! Esse é o mais grave de todos os problemas… Nossas burguesias são muito atrasadas, são burguesias capitalistas, mas têm uma mentalidade pré-capitalista; em todo caso, dependente.
Voltemos ao Uruguai. Entre as coisas a melhorar, a Frente Ampla disse que o essencial é a educação…
Não sou especialista em educação, sou observador. Nós uruguaios mantemos uma velha polêmica: o que é prioridade, a formação humanística integral ou a de caráter científico, tecnológico? Essa disputa se arrasta até hoje, e é comum em toda a América Latina, porque por algo somos filhos da Espanha e não da Inglaterra… O certo é que nós demos prioridade à formação de caráter humanístico e disso derivou uma cultura. Se uma família mandava seus filhos à escola industrial [modalidade de ensino técnico do Uruguai], tomávamos como uma coisa de segunda importância. Temos uma educação que não deu ênfase na matemática, na física, na química, em todos os braços da engenharia, que estão ligadas ao produto material de uma sociedade. Somos fecundos em poetas, escritores e jornalistas, uma intelectualidade muito importante, mas abandonamos o campo do trabalho…
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Da educação e da pesquisa científica…
Sim, caímos em uma espécie de fantasia; acreditar que por meio da matemática ou da física não se desemboca na filosofia, tornamos contraditório algo que não é.
É mais pelo contrário…
Sim! Os velhos matemáticos eram todos filósofos, certo?
A começar por Pitágoras.
Sim. Mas o povo uruguaio vem nos dando um sinal: as pessoas fazem dias de filas para inscrever um garoto no ensino industrial. A matrícula aumentou quase 40%, mas não demos recursos para satisfazer essa demanda; estamos em uma situação híbrida.
De transição, não?
E de combate no campo das ideias, porque eu não tive o apoio das forças políticas… Como prêmio de consolo, me deram a formação de uma nova universidade tecnológica para o interior…
Bicentenario Uruguay / Flickr
Mujica é saudado por estudantes uruguaios em abril de 2013
Quando você diz “me deram”, você se refere ao Congresso, ao Parlamento?
Não, nas negociações prévias. Fiquei com minhas forças políticas [a Frente Ampla] divididas a esse respeito. Agora quando vier a discussão do orçamento, vou lutar para que a Universidade do Trabalho do Uruguai (UTU) tenha um orçamento independente; se você dá o dinheiro a independência vem sozinha. A educação é fundamental, mas não está isolada de outros fundamentos, porque se eu educo e formo, mas não desenvolvo o país, a única coisa que estou fazendo é formar gente boa que se vai; isto é, fico com os custos. Não se pode deixar a educação sem direção política, sem orientação política. Se acreditamos que massificando o ensino a sociedade vai florescer espontaneamente, estamos sonhando, dissimulando, eludindo a tragédia da luta de classes. Esse é o problema…
É necessário desenvolver a estrutura material do país, a economia…
Claro… Não podemos nos agarrar à educação como uma tábua salvadora porque na América Latina tivemos uma fábrica de cérebros que foram pra puta que pariu.
Na Argentina, cerca de 50 mil técnicos e científicos de primeira linha abandonaram o país nas últimas décadas.
O problema é econômico. Se os formo e depois não lhes dou oportunidade; se lhes pago a quarta parte do que lhes pagam no mundo, vão embora!
Que outra coisa você considera que não foi feita durante seu governo, ou que poderia ter sido melhor?
Creio que estamos atrasados em infraestrutura. A economia do país cresceu muito, a produção, mas não a infraestrutura. Temos portos entupidos, vias de comunicação ruins, déficits no transporte, não exploramos os rios… Isso é criminoso; há todo um terreno para trabalhar… Progredimos muito na energia, um problema solucionado por vários anos, mas é necessário batalhar pela infraestrutura.
Alguma outra carência dos governos da Frente Ampla?
Não fizemos esforços sérios nas transformações das quais o Estado precisa. Mas há muita resistência. O Estado precisa de mudanças no Uruguai, isso é decisivo. Porque não podemos esperar que o Uruguai, um pequeno país subdesenvolvido, tenha uma burguesia fundadora, criadora. O Estado tem de cumprir o papel de ir abrindo canais…
E sobre reforma agrária? Considera necessária, possível?
O Uruguai, na década de 40, depois de um debate histórico, promulgou uma lei que era mais que uma lei agrária; era um projeto de país. Fundamos uma coisa que se chama Instituto Nacional de Colonização…
Colonização?
Sim… é o maior proprietário de terras do Uruguai. O maior latifundiário do país é um instituto do Estado… Tem cerca de meio milhão de hectares, e bons. Mas durante um longo período, não lhe deram os recursos econômicos. Como disse um velho político, “votamos a lei, mas não lhe demos os recursos”. Se na década de 60 ou 70, tivéssemos aplicado a fundo o conteúdo dessa lei, provavelmente o Uruguai de hoje se pareceria mais com a Nova Zelândia que com o que somos hoje…
Nós salvamos a vida do Instituto de Colonização. Quando chegamos ao governo, ele estava moribundo, a renda que recolhia dava somente para pagar o salário da burocracia. Demos recursos, demos um empurrão, o colocamos em dia. Há linhas da produção que ainda hoje se encaixam com a pequena estrutura familiar; por exemplo a ordenha, a produção de leite. Mas não podemos aplicar o mesmo critério para a política de cereais porque o mundo e a tecnologia mudaram. Creio que temos de seguir com a política de colonização a partir do Estado, favorecendo aquelas linhas que têm viabilidade econômica, mas não podemos transformar a terra em uma fábrica de pobres.
Temos de colocar a grande empresa contra a parede e obrigá-la a cumprir a legislação moderna, que paga bons salários, que cumpra o seguro social e contribua para tirar as pessoas da pobreza… Não me preocupa que haja proprietários gringos porque não podem levar a terra. E, além disso, temos alguns criollos piores que os gringos. O que me preocupa é como pagam e como tratam as pessoas e qual é a mais-valia que fica no país. Temos de tomar cuidado com a síndrome do “cachorro do camponês” [referência à obra “El Perro del Hortelano”, do espanhol Lope de Vega – expressão usada para descrever pessoas que não tomam atitudes, mas não deixam que ninguém tome em seu lugar], a qual, por convenção, nós da esquerda somos muito afeitos…
Nós temos instrumentos, não temos de fazer nada: a reforma agrária possível e necessária no Uruguai se chama Instituto Nacional de Colonização, que em vez de ter meio milhão de hectares tem de chegar a um milhão e meio, dois milhões. O dia em que tivermos capacidade de avançar mais, talvez sejam possíveis outras coisas, mas sou contra a ideia de fabricar pobres a custo do campo.
O “socialismo real” nos ensinou algo a esse respeito…
Eu não pensava assim, mas os fracassos do mundo socialista me ensinaram essas coisas porque não é possível que a Revolução Cubana tenha a quantidade de anos que tem e ainda tenha dificuldades para dar leite aos guris… Tem de importar. Por que fracassou? E quem fracassou? Quis fazer unidades gigantescas de caráter coletivo e criou uma burocracia do caralho… Na Venezuela se meteram a nacionalizar fazendas de quarenta ou cinquenta mil hectares, que hoje estão na saudade, sem nada, não produzem porra nenhuma, percebe?
Durante seu governo a maconha foi legalizada.
Queremos ter isso controlado. Não é liberalismo hippie. Não tem nada a ver com essa mentalidade de “maconha livre” e todo o resto. Nós não defendemos a maconha como uma panaceia que é boa para a saúde. Trata-se de uma medida contra o narcotráfico, porque pior que a maconha e que qualquer droga é o narcotráfico. É uma política que procura roubar o mercado do narcotráfico. Que seja um negócio legal porque do contrário tenho que reprimir… Se há 150 mil pessoas que decidem fumar, temos de tê-las identificadas, dar-lhes acesso a um produto bom e quando vemos que o sujeito tem sintomas de que está passando da conta, dizer a ele: “meu filho, você tem de ser atendido”, como um alcoólatra. Se mantemos esse mundo na clandestinidade, quando se detecta o problema já é irreversível, caríssimo…
Além disso, é necessário cobrar impostos. Digo, do comércio de drogas. Os narcotraficantes não pagam impostos… O Estado tem de tomar conta dos doentes, mas não recebe nada…
Sim e além disso, no caso da maconha, satanizamos uma planta que no fundo é maravilhosa. Como fibra têxtil, por exemplo, tem aplicações infinitas, para fazer tecidos e um monte de coisas… E como é ilegal, não podemos avançar na investigação científica sobre as aplicações que pode ter no campo da saúde.
Tabaré Vázquez vai prosseguir com essa política? Parece um pouco reticente, assim como em relação à questão do aborto…
Em relação a essas medidas, pelo menos parece que as apoia… (risos).
Antes de terminar, vamos falar um pouco sobre seu passado, sua vida, sua história?
Eu não tenho história, tenho uma historinha (ri). Meu passado? Há cerca de vinte livros escritos; os jornalistas me reviram do avesso (risos). Não leiam todos por favor, são insuportáveis…
A sua vida pode ser uma historinha, como diz, mas apaixonante. Basta imaginar: a militância armada, 15 anos de prisão, alguns em um poço, uma cisterna, sozinho. O que você fez, que estratégia você empregou para sobreviver e chegar hoje a ser o presidente do Uruguai? A maioria das pessoas que passa por isso ou morre, ou enlouquece, ou se quebra…
Não sei se há questões genéticas, mas eu nunca tive dúvidas de que ia sair e de que ia continuar militando. Nunca me passou pela cabeça morrer e deixar de militar. Sempre tive essa esperança e talvez tenha me ajudado. Estive seis anos sem livros e inventava coisas, mecanismos para me defender…
Como quais?
Fazia exercícios de ferramentas, inventava mentalmente ferramentas de uso agrário, que seriam assim ou assado, as calculava, as fabricava mentalmente e assim me entretinha. Caminhava uns quantos quilômetros por dia. Mais que hoje, certamente…
Dentro do poço?
Sim, três passos para cá e três para lá; três passos para cá e três para lá, até que as pernas doíam…
E nunca duvidou que sairia vivo?
Eu não penso na morte. Ela já me assediou várias vezes; me rodeou, mas não me quis. Essa é a parte mais estrutural da minha forma de pensar; eu amo a vida, jamais atentaria contra minha vida… Para mim, a vida é maravilhosa. Não vivo no campo porque sou excêntrico, mas porque adoro a natureza. Ontem me machuquei com uma ferramenta aqui (mostra uma crosta de sangue na divisão do nariz) torcendo uns arames (risos). Sou presidente da República, sim, mas estava com um trator arrancando a terra por aí, cheguei em casa acabado, tomei um banho, limpei o nariz e me arrumei um pouco… Eu sei que são coisas pequenas para quase todo mundo, mas para mim são decisivas; não posso viver de outra forma… Outros terão outras coisas; bom, isso é a liberdade humana, cada um tem que ter tempo, uma margem de tempo para viver as coisas que motivam. Essa é a liberdade; essa palavra grandiloquente, é necessário puxá-la para a realidade, à francesa.
Você fala muito de felicidade em seus discursos.
Dizem por aí que sou um presidente pobre, mas na relaidade sou sóbrio na minha maneira de viver. Vivo com pouco, sem muita coisa material, deliberadamente, é uma opção. Para quê? Para ter tempo livre e usá-lo com essas coisas que me motivam. Se me dedico a acumular dinheiro, depois tenho que ficar desesperado tapando buracos; vão me roubar aqui e vão me foder ali e isso e aquilo, e estou gastando tempo da minha vida – o tempo não pode ser comprado – em coisas que me motivam. Pode ser que motivem outras pessoas; para elas, isso é a liberdade, é necessário ter uma margem de livre opção. Tampouco brigo por um Estado ou uma sociedade que me regulem todas as coisas; ponha-se de gravata ou ponha-se… Ponha o que quiser! Ande como dê na telha, enquanto não ofenda a ninguém. Talvez eu seja meio anarquista…
Que sonho, que projeto falta cumprir?
Os sonhos não terminam nunca, enquanto há existência. Eu tenho convicção socialista, aspiro contribuir para que vá ficando uma inteligência, uns dirigentes desses que, ao morrer, ou ao fim de seu mandato, deixam gente, uma sociedade, que os supera com vantagem. Porque as coisas se estiram no tempo e a vida humana termina sendo curta para o infinito das tarefas do futuro, para ter sociedades mais justas. Essas sociedades não vão nascer por geração espontânea; precisam de vontade humana organizada. Creio que isso é imprescindível; não é a única coisa, mas sem vontade humana organizada, as coisas não são feitas, esse determinismo…
Aquilo de Gramsci, “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”.
Sim… A formação de uma cultura pública que ajude as mudanças é um trabalho formidável. É o único que pode sustentar as mudanças revolucionárias no sentido profundo…
Você diz que não odeia, mas quando você saiu da prisão, do poço, não odiava?
Não, não odeio. Se uma pessoa tem uma interpretação da luta de classes na sociedade, sabe que o trabalho sujo que uma pessoa fez, se ele não fizesse, outra pessoa faria porque também ele é produto das circunstâncias. Claro que existe a quota maior ou menor de sadismo que vem de cada indivíduo. Mas na prisão também encontrei personagens… Soldados que arriscavam o couro para nos trazer uma dose de cachaça ou uma maçã. E encontrei oficiais que se indignavam com muitas coisas que lhes eram ordenadas. Não há preto no branco. Sempre há tons intermediários. Mas, obviamente, se sou lutador político e social, tenho de lutar pelo poder, para realizar mudanças estruturais. Hoje, a esquerda parece acreditar que deve abandonar, ou substituir, a luta pelo poder por uma agenda social: o casamento igualitário, o aborto, as pessoas de cor, os indígenas, o feminismo. Tudo isso está muito bem, eu concordo, mas o negro que está realmente fodido é o negro pobre; a mulher mais discriminada é a mulher pobre, submissa, cheia de filhos e vivendo ao léu; os indígenas também. Não me venham dissimular ou ocultar as diferenças de classes.
Sim, mas há questões pessoais também, emocionalmente, quando uma pessoa sai de um lugar onde foi tratada muito mal, como se liberta disso?
Eu fui ver os calabouços onde estive preso. Tirei uma foto com os coronéis de agora e tudo (risos). Mas, o que passou, passou. Sim, pode parecer doloroso, mas a vida… A vida é maravilhosa; não se deve viver pensando no que você passou, lamentando as feridas, acomodando-se, porque se uma pessoa está choramingando pelo que passou, está se perdendo no passado. E a vida é o futuro, é amanhã, do passado é necessário aprender, mas o passado não deve nos sepultar.
No ano passado você foi nomeado para o Nobel da Paz…
Eu lhes disse que estavam loucos porque floreciam as guerras por todos os lados, era uma confusão o que estava acontecendo, como vocês me vêm com o prêmio da paz? Não têm noção (risos)…? De que paz falamos? Sugeri a eles que dessem o prêmio pós-morte para Gandhi. Faz mais sentido…
O que você vai fazer a partir de 1º de março, com a sua saída do governo?
Agora estou andando em direção à tumba (risos)…
Menos mal que você ama a vida.
Vou no passo mais lento que puder (risos). Eu vejo a morte como usa coisa tão da vida… É necessário aprender a morrer como o lobo do monte, sem ter alarde. É uma maneira de voltar à fonte; é necessário aceitar com naturalidade. Mas enquanto isso, enquanto possa mover as cadeiras, velhas como estão, vou seguir militando. Não concebo a vida de aposentado. Morreria, mas de tristeza em um canto.
*
Pepe, presidente da República Oriental do Uruguai. A “Suíça da América”. Ao fim dos dois governos da Frente Ampla (Tabaré Vázquez 2004/2009; José Mujica 2009/2015) e a ponto de iniciar um terceiro mandato, novamente com Vázquez como presidente, os avanços econômicos, políticos e sociais no Uruguai são notáveis, além de evidentes, e não apenas para a América Latina.
Basta apontar que a dívida pública passou dos 70% para os 23% do PIB [Produto Interno Bruto] (mais da metade, 65%, está agora denominada em moeda nacional); que as reservas do Banco Central chegam a 40% do PIB, os níveis mais altos da região (o próximo governo terá 4 bilhões de dólares para destinar a obras infraestruturais); que o desemprego baixou de 20% para 6%; a pobreza de 40% para 10% e a indigência absoluta de 5% a 0,5%. Todos esses dados estão documentados por fontes sérias em um artigo de Federico Fasano Mertens.
Quanto à tendência política da Frente Ampla, basta dizer que Taberé Vázquez ofereceu a toda a oposição, que aceitou, 25 altos cargos na administração. José Mujica procedeu da mesma maneira. O Uruguai é o país da América Latina com maior nível de alfabetização, segundo a ONU. O segundo da região, depois do Chile, com menor índice de percepção da corrupção; o terceiro, depois da Argentina e do Chile, com maior índice de desenvolvimento humano. O primeiro, com a Costa Rica, em equidade de distribuição de renda: tanto o setor mais rico como o mais pobre representam somente 10% da sociedade, respectivamente.
A pesquisa anual chilena “Latinobarômetro”, em um estudo realizado em 2008, o situa como o país mais pacífico da América Latina. Também é um dos dez mais verdes do mundo (Reader’s Digest); um dos vinte mais democráticos (The Economist) e dos mais seguros e melhores pra viver (International Living).
José Mujica afirmou na entrevista que “a social-democracia se fundou no Uruguai, mas como somos um paizinho, pequenino assim”, não repercute. “A partir de 1910, nós tivemos transformações que eram francamente social-democráticas. Um Estado democrático forte, agressivo, fundador, que ia para frente, que resolvia problemas. Tivemos de defender tudo isso quando veio a onda neoliberal…. Aquilo de pagar as dívidas com as coisas, com as empresas públicas, certo? E, bom, graças a mecanismos que se preservaram, isso pode ser defendido plebiscitariamente. Aqui não se pode fazer o que se fez na Argentina, por exemplo. Os argentinos venderem tudo para pagar as contas e no final ficaram sem as coisas e com as contas…”.
Carlos Gabetta é jornalista e escritor argentino.