Em um duro discurso realizado na noite deste domingo (09/12), dirigido a uma multidão na Praça de Maio, em Buenos Aires, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, fez alusão à extensão da liminar que isenta o grupo Clarín de se adequar à Lei de Meios e pediu que o poder Judiciário “seja independente não só do poder político, mas também do econômico e das corporações”.
Prensa/Casa Rosada
Multidão se concentra na Praça de Maio, em Buenos Aires, em evento pelo “Dia da Democracia e dos Direitos Humanos”
“As pessoas sentem que há setores que continuam se conduzindo por uma lógica de não respeito à vontade popular”, afirmou a presidente argentina, pedindo que os três poderes do Estado tenham “a mesma conduta de decoro”. “Se não respeitam as leis [que saem do parlamento], de qual democracia estamos falando? As pessoas querem uma Justiça que respeite o povo”, criticou.
O discurso de Cristina foi uma resposta à decisão da Câmara Civil e Comercial, da última quinta-feira (06/12), de prolongar a liminar que exime o grupo Clarín de se adequar aos artigos da Lei de Meios, que limitam número licenças de rádio e televisão. O governo argentino, que previa o início da desconcentração dos grupos de comunicação no dia 7, apelidado de “7D”, recorreu à Suprema Corte de Justiça contra a medida.
“Quero uma democracia plena e profunda, comprometida, sem privilégios, porque os setores minoritários, e não estou falando das minorias políticas e culturais, estou falando deste poder econômico ultra-minoritário e concentrado, que numa etapa se serviram dos militares”, disse a presidente argentina, esclarecendo o caráter civil-militar do golpe de Estado que deu início à ditadura (1976-1983). “As Forças Armadas foram utilizadas por setores minoritários que depois lavaram as mãos”, acusou.
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Com o habitual traje preto que usa desde a morte de seu marido e antecessor Néstor Kirchner, Cristina foi muito aplaudida por militantes durante seu discurso. Após algumas frases de efeito, seu pronunciamento era interrompido por cantos de “Néstor não morreu” e “Se mexem com a Cristina, que confusão vai se armar”, entoados pelos militantes que lotaram a Praça de Maio para comemorar o “Dia da Democracia e dos Direitos Humanos”.
Inicialmente, o evento previa comemorar a chegada do “7D”, dia em que finalmente o Clarín e os demais grupos de comunicação do país teriam que se adequar aos artigos da Lei de Meios que limitam a quantidade de licenças de rádio e televisão de cada proprietário. Após o balde de água fria sentido com a decisão da vara civil e comercial de prolongar a liminar obtida pelo Clarín até que se determine a constitucionalidade dos artigos questionados pelo grupo, o evento se restringiu a uma comemoração do aniversário do fim da ditadura, que completa 29 anos nesta segunda-feira (10/12).
“Nesta praça esta cheia de jovens, talvez muitos não lembrem, mas quando [Hipólito Yrigoyen] foi derrocado, a então Suprema Corte de Justiça declarou [o golpe] legítimo”, alfinetou mais uma vez a presidente argentina durante o discurso. “Estamos celebrando estes 29 anos de democracia e essa década ganha desde maio de 2003”, disse, lembrando da reconfiguração da instância máxima do poder Judiciário, promovida por Néstor Kirchner.
“Ele sentia que tinha que renovar profundamente este poder que de ditadura a ditadura, governo a governo, continuavam fazendo parte de um setor que se considera privilegiado. Por isso, ele tomou a decisão de propor um método para a seleção dos juízes que estivesse submetida à opinião publica. Mas o mais importante foi que ele não chamou nenhum amigo, inclusive deu lugar algum opositor. Foi o único presidente de todas as democracias que fez isso”, disse.
Presença como protesto
Apesar da mudança do caráter da intitulada “Festa Pátria Popular”, o conflito pela Lei de Meios esteve presente no evento. Stands da Afsca (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Áudio-Visual) e de cooperativas e veículos comunitários foram instalados nas redondezas da praça. Bandeirinhas e bonés com a inscrição “mais diversidade” e “mais igualdade”, foram distribuídos. Cartazes com mensagens como “democracia ou monopólio” eram vistos no meio da multidão.
“Tudo se misturou. O que fizeram foi misturar um show com o apoio ao projeto do governo. Eu vinha pelo 7D, quando ia acontecer o desinvestimento [dos grupos de comunicação], o que no final não aconteceu. Então venho em forma de protesto, porque continuar com esta medida não favorece em nada o país”, afirmou a Opera Mundi o estudante de jornalismo da Universidade Nacional de La Plata, Bruno Daniel Martínez, de 21 anos.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
Bruno Martínez, estudante de jornalismo, diz que foi a ato na Praça de Maio como forma de protesto contra manobra do Clarín
No começo do festival, duas senhoras assistiam ao destile de blocos de “Murga” na avenida de Maio, em direção à Praça. Com uma bandeira argentina, María Isabel, de 73 anos, e Aidê, de 76, aplaudiam e mexiam seus corpos ao ritmo da música. “Estamos aqui porque é uma festa da Argentina, estamos festejando a liberdade de um povo que foi oprimido por muitos anos. Em todo o país estão comemorando”, afirmou uma delas.
Quando questionadas sobre a extensão da liminar do Clarín, María Isabel subiu o tom da voz: “Foi mais uma palhaçada de grupos econômicos muito poderosos. Dá pena que juízes argentinos, pagos com salários de nosso povo, se vendam ao capital. Nós, argentinos, estamos muito acostumados a isso, mas eles não poderão vencer o povo unido”, garantiu.
Em um dos stands instalados na avenida Diagonal Sul, a professora universitária Paula Rodríguez Marino e integrante da Rede de Faculdades de Comunicação e Jornalismo da Argentina, veio da província de Río Negro para participar do evento. “Para nós é muito importante estar aqui para difundir quais são os princípios da Lei de Meios e evitar confusões. Podemos ter contato com o público para explicar que a lei é sobre comunicação áudio-visual, por exemplo, e não sobre impresso”, afirmou.
Para ela, a quantidade de gente na praça demonstra a insatisfação quanto à decisão da instância civil e comercial a favor do grupo Clarín: “A lei é a oportunidade de democratizar a palavra, sua elaboração contou com um grau nacional de participação e aceitação nacional. E o que surpreende é isso: muita gente, massivamente, dizendo que não está de acordo com isso que vimos, que mostrou que o judiciário, na verdade, é uma corporação como os grupos de meios de comunicação”, disse.