Se as mudanças no clima seguirem o ritmo atual, em algumas décadas o continente europeu pode se tornar um ambiente propício para a proliferação de um dos tipos do mosquito Aedes (o Aedes albopictus), tornando a região vulnerável a uma velha conhecida dos brasileiros: a dengue. Esse é um dos alertas feito pela próxima edição do Philosopical Transactions, um dos mais antigos e renomados periódicos científicos do mundo, publicado desde 1665 e que já teve em suas páginas estudos assinados por Charles Darwin e Michael Faraday. França, Inglaterra, Irlanda e Holanda são os países sob maior ameaça de acordo com a projeção.
“O que este volume vem mostrar é que, em duas décadas, várias doenças tropicais podem deixar de estar restritas aos trópicos para chegar às áreas de clima temperado”, alerta Paul Parham, um dos editores do caderno científico e pesquisador do campus londrino da Universidade de Liverpool, onde recebeu Opera Mundi para uma conversa sobre como as mudanças climáticas podem impactar a proliferação de doenças infecciosas.
Desde 2007, quando 200 pessoas foram infectadas dentro da Itália pelo vírus chikungunya, ficou evidente a vulnerabilidade do continente às chamadas doenças tropicais. O que Parham e outros cientistas estão fazendo é, por meio de modelos matemáticos, ver como as mudanças climáticas influenciam esse risco.
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Continente europeu pode se tornar ambiente propício para proliferação do Aedes albopictus
A hora e a vez dos mosquitos?
A chave para entender por que as mudanças climáticas podem alterar a dinâmica de proliferação dessas doenças está no modo como elas são transmitidas. Doenças tropicais como a dengue, a malária, a febre chikungunya ou a febre do Nilo têm um ponto em comum: seus vírus precisam da ajuda de mosquitos (chamados vetores ou hospedeiros) para chegar às células humanas. E são justamente esses mosquitos o foco de atenção dos pesquisadores.
Ao que tudo indica, esses insetos poderão se beneficiar e muito da elevação da temperatura global e das mudanças na umidade e na quantidade de chuvas, com destaque para o mosquito da dengue. “Ao contrário de outros vetores, como o da malária, o Aedes não depende muito de uma quantidade contínua de chuvas e é mais tolerante à temperatura, o que o torna mais difícil de controlar”, fala Parham.
Apenas a presença do vetor não é suficiente para haver surtos da doença. Todavia, um dado de 2010 do Centro Europeu para o Controle e Prevenção de Doenças calculava em 5,8 milhões o número de pessoas com dengue que ingressou no continente naquele ano. Como lembra Parham, é aí que mora o risco: no encontro entre os mosquitos e pacientes infectados. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, enquanto em 1970 apenas nove países no mundo registravam epidemias de dengue, hoje a doença é endêmica em mais de 100 nações, com 40% da população global em áreas onde há risco de contágio da doença. Na própria Europa continental já houve dois casos de transmissão de dengue, na França e na Croácia, ambos em 2010, e, em 2012, mais de 2.000 pessoas foram infectadas na Ilha da Madeira. Um aumento na população de mosquitos transmissores da doença no continente europeu poderia aumentar o risco de uma epidemia na região, uma das únicas áreas do planeta ainda livre do problema.
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Além disso, uma das pesquisas que compõe a edição de abril do Philosopical Transactions mostra pela primeira vez evidências empíricas de que a capacidade de adaptação desses mosquitos é muito maior do que o imaginado. “Quando as pesquisas de modelagem matemática para o estudo epidemiológico começaram, não se esperava que os vetores mudariam muito com o passar do tempo”, diz Parham. Entretanto, o que se viu agora é que essa é uma premissa incorreta, pois os mosquitos conseguem evoluir para adaptar-se a novas temperaturas em intervalos de tempo não muito longos.
Para Parham e outros cientistas que, como ele, trabalham criando modelos matemáticos, isso significa um aumento no número de variáveis possíveis. Variáveis que, como ele explica, ainda precisam ser melhor entendidas e controladas para a produção de modelos mais exatos. Mais que um puro exercício científico, aclara Parham, os modelos podem ser uma importante ferramenta para ajudar os governos a guiar as decisões políticas diante da ameaça crescente representada por essas doenças.
“Se sabemos como uma doença está se espalhando, podemos prever quais são as medidas que terão melhor efeito e melhor custo-benefício”, explica. Isso é especialmente interessante em um cenário no qual ainda não há vacina contra nenhum desses vírus e tudo o que resta a governos e sociedade é controlar a população de vetores e evitar seu contato com o vírus para conseguir minimizar os contágios.
Rachel Costa/Opera Mundi
Um futuro incerto
Um grande desafio evidenciado nos trabalhos de Parham e dos outros pesquisadores é entender qual será a eficiência dos métodos atualmente usados em um cenário de mudança climática. O que se tem visto é que o impacto do clima é diferente sobre cada uma dessas doenças e, dentro de uma mesma doença, pode haver respostas distintas entre cada um de seus vetores. Por isso, é ainda difícil determinar exatamente como cada uma delas será afetada em cada região do planeta.
O que já se sabe é que mudanças no clima podem, inclusive, fazer com que métodos que atualmente tem um bom custo-benefício, percam parte de sua eficiência. Parham cita como exemplo o uso de inseticidas e mosquiteiros para controlar a malária em várias regiões da África. As medidas têm dado bons resultados, mas podem tornar-se menos efetivas em um cenário onde há temperaturas maiores ou diferenças na quantidade de chuva.
A expectativa do cientista é que, com a divulgação dessa série de novos estudos mostrando como as doenças tropicais podem impactar a vida em todo o planeta, e não apenas nos trópicos, surja mais interesse pelo tema e, como consequência, mais investimentos para ajudar a elucidar todas as dúvidas que ainda pairam sobre o assunto. Uma boa hora para as doenças tropicais perderem o outo nome pelo qual foram conhecidas nas últimas décadas: o de doenças negligenciadas.