A divulgação, pelo ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos), do projeto “SwissLeaks”, fornecendo detalhes sobre mais de 100 mil clientes do HSBC na Suíça, jogou luz sobre o tema da evasão fiscal. Ela também provocou um debate intenso sobre o papel da mídia.
As revelações foram feitas quando o ex-funcionário do HSBC Hervé Falciani resolveu passar arquivos gigantescos para as autoridades franceses e para o jornal Le Monde. O diário compartilhou o conteúdo com o ICIJ e sua rede de 150 jornalistas no mundo inteiro. Enquanto as informações divulgadas provocaram escândalos em outros países, no Brasil, a grande mídia continua muito discreta. Apesar de ter cinco jornalistas membros do ICIJ (Angelina Nunes, Amaury Ribeiro Jr., Fernando Rodrigues, Marcelo Soares e Claudio Tognolli) no Brasil, Fernando Rodrigues (do UOL), é o único que tem em mãos as apurações dos clientes brasileiros. Por enquanto, ele limitou as publicações a denúncias de contas associadas ao escândalo da Petrobras. Insatisfeito pela falta de transparência, o jornalista Amaury Ribeiro Jr. decidiu abandonar o ICIJ.
Opera Mundi conversou com Serge Michel, repórter especial do Le Monde, editor-chefe da seção “África” e coordenador do projeto “SwissLeaks” dentro do jornal. Ele explicou a decisão, criticada na França inclusive por um dos principais acionistas do Le Monde, de divulgar os nomes dos responsáveis da evasão fiscal, e o impacto, segundo ele, das revelações sobre o jornalismo.
Reprodução/YouTube
Segundo Serge Michel, o “SwissLeaks” foi a primeira vez em que jornalistas tiveram acesso a dados “íntimos” de um banco
Opera Mundi: A recente divulgação da lista de nomes de mais de 100 mil correntistas da filial do banco HSBC em Genebra dominou o cenário midiático das últimas semanas. Não é, porém, nenhum segredo que a Suíça é um paraíso fiscal para fundos ilegais. Porque o “SwissLeaks” é uma inovação?
Serge Michel: Para começar, a Suíça não é exatamente um paraíso fiscal. É uma plataforma financeira que acolheu capitais, às vezes não declarados e até de origem duvidosa, vindos do mundo inteiro. Além disso, a Suíça mudou drasticamente ao longo dos últimos dez anos suas leis e regulamentos sob a pressão dos Estados Unidos e da União Europeia. O que descobrimos nos documentos “SwissLeaks” é que o banco, para proteger ainda mais seus clientes, visto que a Suíça já não oferecia as vantagens do passado, propôs para eles novas modalidades offshore nas Ilhas Virgens, Cayman, Panamá, etc.
Swissleaks: Conheça cinco casos revelados pelo vazamento de contas do banco HSBC na Suíça
Com “SwissLeaks”, esta é a primeira vez que os jornalistas têm acesso aos dados “íntimos” de um banco — e não se trata de um banco qualquer. Esses dados foram utilizados pelas autoridades judiciárias e fiscais em vários países, a começar pela França. Mas para os jornalistas, há uma riqueza de histórias absolutamente sem precedentes, e isso provavelmente explica por que eles são mais do que 150 trabalhando nestes documentos, em quase 50 países. Após a publicação, o ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos) recebeu mais de 300 pedidos de outros veículos para ter acesso aos dados.
OM: Depois das revelações de Manning e as de Snowden, “SwissLeaks” é o terceiro grande vazamento ao nível mundial. Como isso altera o jornalismo? É uma tarefa que requer habilidades e uma ética especifica?
SM: Todos estes vazamentos são muito diferentes. No caso do WikiLeaks, apenas cinco jornais foram contatados por Julian Assange, e ele não forneceu nenhum trabalho jornalístico. Ele simplesmente disponibilizou os documentos e, em seguida, os publicou na internet sem muito discernimento. Isso explica, talvez, porque ele acabou brigando com quase todos os seus parceiros. No caso de Snowden, ele tem trabalhado com um único veiculo, The Guardian, e não divulgou seus documentos. O consorcio ICIJ, ao contrário, forneceu tanto um trabalho de processamento de dados e como uma investigação jornalística. Alguns dos artigos “SwissLeaks”, mas também “Offshoreleaks” ou “LuxLeaks” são assinados por repórteres do ICIJ e são de excelente qualidade. Para lidar com estes documentos, uma metodologia comum foi decidida. Publicamos apenas os nomes relevantes e chamamos a todos antes de publicar o seu nome.
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OM: Na França, a Receita Federal já tinha recebido estes nomes quatro anos atrás. Qual é o interesse, então, de entregar hoje para o público o nome de alguns?
SM: É necessário revelar nomes para dar uma realidade à evasão fiscal, para contar melhor o sistema. Temos dado os nomes de pessoas (menos de 50 franceses em 3.000) que praticavam a evasão fiscal caracterizada ou que eram já processados pela Justiça por esta razão. Também escolhemos pessoas para as quais o sucesso ou a fama dão, do nosso ponto de vista, uma responsabilidade especial, a de dar o exemplo. Mas também contatamos por telefone ou escrito a todos para que possam se defender ou explicar a situação deles.
OM: Decidiram ocultar alguns nomes?
SM: Obviamente não escondemos nenhum nome significativo. As pessoas de esquerda nos criticaram por não ter revelado contas bancárias de grandes figuras da direita, e vice-versa. É que eles não estavam mesmo! Parece que o HSBC não é o banco dos políticos franceses que têm contas na Suíça…
OM: Como funciona o ICIJ?
SM: Basicamente, é uma pequena organização de 5 a 10 pessoas, dependendo do projeto do momento. Às vezes, é o próprio ICIJ que obtém documentos ou informações sobre as quais trabalha associando jornalistas de investigação de todo o mundo fazendo parte de sua rede. Outras vezes, um dos jornalistas da rede ou um de seus meios de comunicação recebe documentos e os compartilha.
Flickr/ Gyver Chang
Fachada de prédio do HSBC em Cingapura: lista com 100 mil correntistas na Suíça foi divulgada por consórcio de jornalistas
OM: Como trabalham com os outros jornais? Como conseguem guardar o segredo?
SM: O trabalho com os outros jornais funciona assim: começa com uma grande reunião (em Paris no caso de “SwissLeaks”, em Bruxelas para “LuxLeaks”) e a colaboração segue depois em um fórum seguro onde todos podem compartilhar suas descobertas e perguntas. É um pouco parecido com um Facebook privado. Quanto ao sigilo: como todos os que trabalham nisso se conhecem, se um de nós trair e publicar a informação, ele ficaria coberto de vergonha imediatamente. Há muito mais vantagens de se seguir as regras comuns do que de tentar “privatizar” um furo.
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OM: De que maneira esta estrutura muda o jornalismo tradicional?
SM: O ICIJ é constituído por jornalistas freelancer, outros empregados por jornais privados (Le Monde, The Guardian, etc.) ou pela mídia estatal (no caso da BBC). A ideia é que o tema e os arquivos são tão grandes que ninguém consegue lidar sozinho. Frente a grandes atores globalizados (como o próprio HSBC, como os paraísos fiscais), precisa-se uma organização de investigação também global. Essa regra pode haver exceções: Snowden, com o The Guardian só, conseguiu abalar a NSA.
OM: Quais são os critérios de adesão no ICIJ? Por que dar essa informação para um determinado veículo ou jornalista em um país?
SM: Isso você tem que perguntar para o próprio ICIJ. Mas posso adiantar que a as pessoas escolhidas trabalham no jornalismo de investigação há tempo, têm uma reputação impecável e um apetite pelo jornalismo de dados. A rede foi construída ao longo dos anos e o trabalho de cada um de seus membros foi testado ao longo dos projetos.
OM: Neste contexto, cada um pode decidir fazer o que ele quiser com as informações ou existem critérios comuns? Aqui no Brasil, muitos jornalistas questionam por que o único jornalista que recebeu a lista foi Fernando Rodrigues, que representa o UOL, do Grupo Folha, e a forma como ele seleciona suas denúncias.
SM: Cada um decide os aspectos que parecem relevantes para ele. Mas se ICIJ tiver a sensação de que há outras coisas importantes para tal ou tal país, pode decidir dar uma mão a um jornalista, ou propor a ajuda de colegas para trabalhar em conjunto. No entanto, eu não sei o que foi decidido para o Brasil.
[*Em um post no blog que mantém no UOL, Fernando Rodrigues disse que os nomes e contas bancárias sobre os quais tiverem “interesse público e jornalístico” e que se puderem provar que “existe uma infração relacionada ao dinheiro depositado no HSBC na Suíça” serão divulgados. Segundo o jornalista, a “imensa maioria” dos nomes da listagem brasileira é desconhecida do grande público. Há, segundo Rodrigues, uma “minoria de pessoas conhecidas”, composta por “empresários, banqueiros, artistas, esportistas, intelectuais”. Ainda de acordo com ele, os dados vêm sendo apurados em parceria com o ICIJ desde o final de 2014.]
OM: Houve, no Le Monde, uma forte tensão na semana passada quando Pierre Bergé, um dos donos do jornal, disse publicamente ser contra a divulgação de nomes de proprietários de contas. Como lidar com a questão dos acionistas dos jornais e seus interesses econômicos?
SM: Cada jornal tem uma relação diferente com os seus acionistas. Em Le Monde, os acionistas se comprometeram a não se envolver no conteúdo, isso está bem claro nos contratos. Pierre Bergé é livre para fazer comentários, e nos respondemos para ele que éramos livres para fazer nossas escolhas editoriais. Ele acabou reconhecendo nossa independência. Eu acho que, no final, todo mundo cumpriu o seu papel. Não houve tensão interna após os comentários de Bergé. Ao contrario, toda a redação demonstrou solidariedade com o que foi decidido em relação ao “SwissLeaks”, escolhas que tinham sido extensivamente discutidas e ponderadas.
OM: Qual o impacto prático dessas revelações?
SM: Na Suíça, uma investigação foi aberta e perquisições ocorreram no banco na semana passada. É já um fato bastante notável. Na Grã-Bretanha, ex-executivos do banco e alguns funcionários estão agora no olho do furacão. Vários governos para quem a França tinha passado as listas dos cidadãos implicados, e que não agiram na época, estão agora sob pressão para fazê-lo com vigor. Eu acho que o impacto do “SwissLeaks” é enorme, e vai ainda se desenvolver ao longo de meses ou anos. Haverá novas leis, novos regulamentos, as práticas vão mudar.