O Aeroporto Internacional Charles de Gaulle, em Paris, acolheu dezenas de escritores brasileiros na última semana. Enquanto 48 deles são convidados do Salão do Livro, que homenageia o Brasil este ano e termina nesta segunda-feira (23/03), várias editoras trouxeram outros e aproveitaram a oportunidade de exibir as obras de seus catálogos.
Acadêmicos também não deixaram passar a oportunidade de celebrar os grandes nomes da prosa brasileira. É o caso, por exemplo, de Saulo Neiva, professor de literatura portuguesa na Universidade Blaise Pascal, em Clermont-Ferrand, uma cidade do centro da França. Especialista em Machado de Assis, ele organizou em paralelo ao Salão do Livro, uma mesa-redonda na Casa da América Latina, em Paris, e uma exposição, “Machado de Assis, le sorcier de Rio” (“Machado de Assis, o bruxo do Rio), que será apresentada na sede da Unesco sobre o autor de Dom Casmurro. Ele analisa as dificuldades da literatura brasileira para atrair um publico fora do país, como esta inserção melhorou e o papel do Estado nesta evolução.
Opera Mundi: Como o senhor qualificaria a presença da literatura brasileira fora e especificamente na França?
Saulo Neiva: Se falarmos da realidade francesa, que conheço melhor, constatamos, de fato, que o impacto dos textos brasileiros traduzidos sobre a produção cultural local é bastante relativo. A fecundidade desses textos junto a autores e pensadores franceses é mínima. De quais autores brasileiros podemos dizer que têm ou tiveram, na França, uma repercussão semelhante à que tem as obras de Jorge Luis Borges, Neruda, Cortazar, Octavio Paz, Umberto Eco? É o caso, de certo modo, de Clarice Lispector e, apesar disso, sua repercussão foi em parte restringida aos especialistas dos estudos femininos. Podemos também mencionar a repercussão das obras de Jorge Amado e José Mauro Vasconcelos, salientando ao mesmo tempo o quanto ela é datada e o quanto ela não teve consequências palpáveis, em termos de criação literária nem de reflexão.
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OM: Como explicar este conhecimento fraco?
SN: Podemos recorrer a vários fatores. O português ocupa uma posição periférica na hierarquia das línguas, em termos de porcentagem de traduções: poucos livros são traduzidos da nossa língua para o inglês, que ocupa uma posição hipercentral, ou o francês, considerada como central. A isso se acrescentam outros fatores, como a política cultural do Brasil no estrangeiro: somente nos últimos anos se começou a dar apoio, de modo mais coerente e permanente, a traduções e ao ensino. Se compararmos com um país como Portugal, temos a mesma língua em posição periférica, mas uma política de divulgação cultural que existe há décadas e que, ainda por cima, também é incentivada por uma instituição importante como a Fundação Calouste Gulbenkian. Além disso, também podemos dizer que um papel importante é desempenhado por mediadores – personalidades que se empenham em divulgar uma literatura junto à outra cultura – como tradutores, críticos, editores, representantes legais e agentes literários.
OM: Entre os mediadores, o papel do Estado é central?
SN: Como já disse, o papel do apoio público brasileiro é somente um dos fatores a serem levados em conta. Nos últimos anos, realmente, esse fator tem mudado para melhor. O programa de apoio às traduções da Fundação Biblioteca Nacional é um ponto positivo. Os frutos, porém, não são colhidos de imediato, por isso é fundamental que a política exterior continue a apostar na importância da soft power da cultura e, mais precisamente, da literatura.
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OM: E o desempenho dos próprios autores, mudou?
SN: Percebo uma profissionalização de autores mais jovens, o que os leva a recorrer a agentes literários de renome, contribuindo para que seus livros circulem mais facilmente. Essa profissionalização pode, em contrapartida, dar origem a uma literatura que é concebida “para ser exportada”, o que acho empobrecedor.
OM: Como professor, como o senhor vê o interesse na França pela cultura brasileira em geral?
SN: Não se deve negligenciar certa expectativa no imaginário francês – esse “Brasil, país do carnaval” – e que até certo ponto é incompatível com aquilo que se espera de um lugar que seja berço de grandes autores de literatura. Esse interesse, porém, tem aumentado muito nos últimos anos. Se tradicionalmente ele estava muito associado a uma imagem estereotipada do país – seja uma terra de canibais, seja o paraíso do bom selvagem – hoje começamos aos poucos a ter uma visão mais complexa do país.
OM: Porque um gigante como Machado de Assis, considerado aqui como o pai da prosa brasileira, continua tão pouco conhecido fora do pais?
SN: Talvez por duas grandes razões. A literatura machadiana não corresponde a uma imagem pitoresca que temos do Brasil, e que podemos confirmar tão facilmente nos livros de Jorge Amado, por exemplo. Por outro lado, a recepção dele na França sofreu inicialmente de uma espécie de obnubilação – quando foi traduzido pela primeira vez, em 1909, ele foi apresentado como um Anatole France dos trópicos, quer dizer, um pobre simulacro de alguém que na época era considerado um grande nome da literatura francesa. Com os anos, vai se percebendo a grandeza de Machado de Assis, à medida que a obra de Anatole France vai deixando de ser considerada como fundamental.
OM: Como se manifesta concretamente esta valorização?
SN: Por exemplo, uma edição bilíngue do Conto de Escola, com ilustrações do brasileiro Nelson Cruz, foi publicada pela editora Chandeigne e selecionada pelo Ministério da Educação da França para ser lida em sala de aula, por alunos que têm em torno de nove ou dez anos. São crianças que, ao mesmo tempo em que aprendem a ler, também descobrem a obra de Machado de Assis. O texto foi publicado pelo autor em jornal, em 1884, e depois no livro “Várias Histórias”, em 1896. Nunca Machado de Assis imaginaria que um dia ele seria utilizado no ensino fundamental francês.
OM: Este interesse se estende além do circulo escolar?
SN: Por ocasião do Salão do Livro de Paris, três grandes editoras francesas se uniram em torno do autor carioca. A editora Chandeigne colaborou conosco, divulgando gratuitamente entre professores, conselheiros pedagógicos e inspetores do ensino o dossiê de orientação pedagógica sobre a experiência de leitura de Machado nas escolas francesas de ensino fundamental, que nossa equipe elaborou. Alunos de três escolas trabalharam durante um ano letivo sobre a edição ilustrada de Conto de Escola. Também fiz a tradução, apresentação, notas e edição de texto bilíngue do livro de contos “Várias histórias” para a tradicional editora Classiques Garnier, herdeira, aliás da editora original do autor. Trata-se da primeira edição bilíngue desse livro. Simultaneamente, seus principais romances estão sendo reeditados pela Métailié, com novas capas e traduções revistas. Em terceiro lugar, ao decidirmos realizar a exposição “Machado de Assis, le sorcier de Rio”, com o objetivo de contribuir para que o autor de Dom Casmurro seja descoberto pelo público francês – ou redescoberto sob novos aspectos – , consegui o apoio de parceiros diversos. Essa mostra, que está sendo exposta na sede da Unesco, obteve o patrocínio tanto de órgãos públicos e organismos internacionais, quanto de instituições privadas. Esse interesse demonstra o potencial desse autor junto ao público francês.