“Presos? Pra começar, esta não é a palavra correta. Eu diria removidos ou sequestrados, porque ninguém veio se identificando como autoridade com uma ordem judicial. Simplesmente levaram-nos”.
Estas são as palavras do cirurgião e escritor Gino Strada, criador da ONG italiana Emergency, que constrói e gerencia hospitais em algumas das piores zonas de conflito armado no mundo, em entrevista ao Opera Mundi.
Na última segunda-feira, nove funcionários do hospital da Emergency – três italianos e seis afegãos – em Lashkargah, na região de Helmand (sul), foram presos pelo exército afegão, sob acusação de envolvimento em um atentado contra o governador local, Gulab Mangal.
Em um primeiro momento, as forças da ISAF (a missão ONU no país) negaram participação na operação. Mas a divulgação de um vídeo da agência de notícias norte-americana AP obrigou-os a mudar de versão.
Nas imagens, veem-se claramente militares britânicos do contingente da Otan entrando no prédio e obrigando a equipe a se identificar.
Segundo notícia publicada pelo jornal The Times, de Londres, o porta-voz do governo de Helmand, Duad Hamadi, declarou que o os italianos tinham confessado os fatos, mas o mesmo porta-voz desmentiu, declarando que o jornalista havia mal-interpretado. O jornalista Jerome Starkey, contatado por uma agência de notícias italiana, confirmou as declarações: “Estava tão surpreso que, à tarde, voltei a ligar e ele me confirmou a notícia”.
Sem distinções
A Emergency é uma ONG nascida em 1994 que até hoje tratou gratuitamente de mais de 4 milhões de pessoas em zonas de conflito. Tem hospitais para atender feridos de guerra, emergências cirúrgicas e centros para reabilitação de vítimas de minas terrestres no Camboja, no Iraque, na República Centro-Africana, Sri Lanka, Afeganistão, Serra Leoa e um importante hospital de cirurgia cardíaca no Sudão. Na Itália, administra um hospital que garante assistência gratuita a imigrantes clandestinos na cidade de Palermo. A ONG teve ainda programas em outros conflitos, como os de Ruanda, Eritreia, Palestina, Kosovo e Angola.
Desde 2004, o hospital de Lashkargah, único na região, já atendeu a 60 mil pessoas e operou 12 mil.
Segundo a inteligência de Cabul, o prédio abrigava armas e explosivos escondidos. “A busca aconteceu quando nenhum de nós estava presente. Mas, mesmo tendo um sistema de segurança que acreditamos ser bom, não posso excluir que alguém tenha levado aquele material para o nosso hospital”, defendeu-se Strada.
“O fato é que o nosso trabalho no Afeganistão é feito só de atendimento médico, para qualquer um, porque uma vida humana é sempre uma vida humana. Todos podem receber nossa ajuda no Afeganistão ou no outro lado do mundo se precisarem. Isto é que importa. É por este princípio, que sempre respeitamos, que a Emergency representa a face amada da Itália no país. Eu me pergunto se parece verossímil que um cirurgião italiano vá ao Afeganistão, cure e opere gente durante anos, mas secretamente planeje matar um governador? Eu acho que, se quiserem contar mentiras, deveriam pelo menos contá-las de forma plausível.”
Regras quebradas
Segundo o cirurgião, as regras do jogo foram quebradas quando um hospital em uma zona de conflito foi atacado: “Além de todos os jogos políticos e besteiras que os políticos dizem ou fazem, o sentido de tudo que está acontecendo é que não há mais respeito nem por um hospital. Um hospital é uma coisa séria em uma sociedade. Quando se ataca um hospital, perde-se a civilização. Nós temos ideias muito claras sobre a medicina, a ajuda humanitária e os direitos humanos. Eu, por exemplo, acho que um ferido deve ser atendido por sua condição de ferido. Não só eu acho isso, mas está claramente escrito em todos os tratados, embora não sejam aplicados. Eu me lembro que, no ano 2000, a Emergency tinha um hospital em cada lado da guerra e, até 2001, com a nova fase, um mujahidd podia ser atendido no hospital de Cabul, sob controle talibã, e um talibã no de Pashir, sob controle dos mujaheddin, e em seguida voltarem para casa. Se tirarmos até esta parte de humanidade da guerra, arriscaremos a barbárie total”.
Para Gino Strada, é possível entender por que o hospital de Lashkargah incomoda tanto as autoridades afegãs. “Incomoda porque joga na cara a verdade sobre a guerra: os 40% de crianças que acabam debaixo das bombas; com as fotos, as histórias, os fatos, as lágrimas e os sorrisos. Isto faz cair por terra estas liturgias e retóricas que estamos lá para levar a paz, que é uma missão humanitária, que fazemos a guerra mas não matamos ninguém, só disparamos. A realidade, gostem ou não, está lá no hospital e incomoda. Do outro lado, esta é a maior operação da Otan nos últimos dez anos, segundo eles, e não há nenhum jornalista documentando o que acontece nas zonas de combate. Não admitiram nenhum. Esta é a guerra da nova democracia?”
Na Itália, se prevê uma manifestação nacional no dia 17 (sábado) em apoio à Emergency. No site da ONG, há um abaixo-assinado iniciado no dia do sequesto que já tem quase 100 mil assinaturas.
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