Faz dez anos que Hugo Chávez governa a Venezuela. Desde então, o país passou por uma série de melhorias, embora o índice de desigualdade tenha melhorado pouco em relação à quantidade de dinheiro investida. Uma das razões é o fato de a elite continuar tendo grandes privilégios junto ao Estado, apesar do “socialismo do século 21” apregoado pelo presidente. A análise é do sociólogo, ativista e analista sociopolítico Antonio Plessman, que concedeu a entrevista a seguir.
Dez anos no poder, é tempo de balanço para o presidente Hugo Chávez. A Venezuela mudou realmente?
A partir de 1999, uma nova elite assumiu o controle da maior parte das instituições do Estado venezuelano, com o objetivo claro de construir uma hegemonia alternativa àquela que existia há 40 anos. O discurso do governo Chávez mudou bastante nesta década, mas permaneceu uma constante: a necessidade de fazer da Venezuela um país igualitário. Trata-se não somente de ganhos no terreno material, ou seja, alcançar uma igualdade socioeconômica, mas também da possibilidade para todos de participar na definição dos assuntos públicos, que é a igualdade política, e da valorização dos diversos estatutos sociais, ou seja, a igualdade cultural.
O que aconteceu do ponto de vista político?
A Constituição de 1999 tem como objetivo principal reduzir a brecha entre o representante e o representado. Isso começa já na elaboração do próprio texto da Carta, que teve intervenção de movimentos sociais, acadêmicos, ONGs… Um processo inédito na América Latina. Paralelamente, o governo acabou com a criminalização dos movimentos sociais. As rádios comunitárias, que sempre existiram, cresceram muito durante a década, e são atualmente as mais numerosas do continente. Outro exemplo: a Venezuela tem hoje 5.920 Comitês de Terras Urbanas (CTUs), que lutam pelo direito à moradia nas favelas, e representam cerca de 4,7 milhões de pessoas. Desde o começo, esse governo entendeu que dependia da força política das bases. Essa percepção aumentou ainda mais depois do golpe de estado contra Chávez, em abril de 2002, quando o povo exigiu sua volta ao poder. O governo multiplicou medidas que expandiam a participação política popular. É o caso das missões sociais, que procuram eliminar o entrave tradicional da burocracia. O governo procurou também facilitar a participação eleitoral dos mais pobres. Foram cadastradas milhões de pessoas que nunca tiveram direito a carteira de identidade, e milhares de colombianos refugiados receberam nacionalidade venezuelana, alguns já da terceira geração. O Conselho Nacional Eleitoral colocou mesas de voto nas favelas. Antes, para os pobres, era complicado demais votar. Pagavam caro o transporte e perdiam o dia para chegar até os centros de votação. Acabavam não indo votar, já que a Venezuela é um dos únicos países da América Latina onde o voto não é obrigatório.
A oposição criticou o efeito eleitoreiro dessas medidas…
Sem dúvida, são eleitoreiras. A maioria dessas pessoas vota no Chávez, já que ele é responsável pelas mudanças. Mas todas essas medidas têm também um efeito importante de inclusão social. Pela primeira vez, milhões de venezuelanos têm a sensação de poder influir na vida política do país, quer a nível local, quer nacional. Além disso, ao contrário do que muitas pessoas achavam, as missões não são vistas pelo povo como um presente. Uma pesquisa recente do Centro para la Paz da UCV [Universidade Central da Venezuela] sinalizou que mais de 65% da população considera as missões um direito do povo e, portanto, uma obrigação do Estado. Essa constatação mostra também a mudança cultural dos dez últimos anos. As missões resgataram a auto-estima das classes mais pobres, e esse efeito foi amplificado pelo discurso do governo. Pela primeira vez, o negro, o mulato, o indígena foram valorizados, assim como toda a cultura popular. Isso é uma revolução num país onde as mulheres costumavam tingir os cabelos para parecerem loiras e a classe média passava férias em Miami. O efeito é visível: as novelas começaram a incorporar negros e mulatos, antes totalmente ausentes da televisão, e há mulatas candidatas ao concurso de Miss Venezuela, que no país é uma verdadeira instituição.
Houve avanços reais no campo econômico?
É a questão mais ambígua. A vontade política do governo de acabar com as desigualdades econômicas é clara. Basta ver o aumento constante dos gastos públicos desde 1999: os gastos sociais passaram de 34,7% para 44% do orçamento e seu peso no PIB disparou de 8,2% para 13,8%. É um esforço considerável, que tem resultados importantes. No início do primeiro mandato de Chávez, a Venezuela tinha 43% de pobres e 17% de indigentes. As proporções caíram para, respectivamente, 28,5% e 8%. Os programas educativos gratuitos melhoraram a taxa de escolaridade, que no ensino médio passou de 28% em 1998 para 41% em 2006. Da mesma forma, a assistência sanitária pública e gratuita fez aumentar a esperança de vida. Não é pouca coisa. Mas a distribuição de renda continua quase idêntica. O índice de Gini teve uma redução mínima em relação à quantidade de dinheiro investido no social: passou de 0,48 para 0,42 [0 corresponde à igualdade perfeita e 1, à pior desigualdade possível]. Em 1998, os 20% mais pobres detinham 4% da renda total; em 2007, apenas 5,2%. Em compensação, os 20% ricos perderam, mas muito pouco: passaram de 53,3% a 47,6% da renda total. A mudança da estrutura social é quase nula em dez anos. Na verdade, a revolução socioeconômica não aconteceu.
Como explicar esse processo tão lento?
Há, claramente, problemas de gestão, corrupção e ineficiência. Isso tem a ver com a falta de quadros no governo. De um lado, existe a desconfiança de muitos, no âmbito de uma sociedade muito polarizada. Mas também para os progressistas não é fácil trabalhar no governo. O estilo autoritário do Chávez acaba com as iniciativas e faz fugir muitos quadros. A quantidade de militares na hierarquia do governo também não ajuda. As missões, que nasceram como um mecanismo paralelo para facilitar a ação do Estado, são hoje uma fraqueza do sistema. Foram pensadas como temporárias e viraram permanentes. Essa nova burocracia pode ser até pior que a antiga, já que tem muito menos controle público. As denúncias de corrupção nas missões aumentaram bastante nos dois últimos anos.
Não houve mudanças significativas no capitalismo venezuelano?
Na verdade, Chávez anunciou o surgimento do socialismo do século 21, mas a estrutura produtiva quase não mudou. A economia social (cooperativas, empresas familiares) é ainda muito marginal: representa somente 1,6% do PIB e 210.000 empregos. Apesar das muitas nacionalizações, o setor privado continua responsável por 70% da atividade econômica. São algumas elites que aproveitaram a bonança ligada ao boom do petróleo, até poucos meses atrás. O Chávez costuma repetir que os bancos e o setor de telecomunicações são os que mais se apropriam das riquezas nacionais. Mas está ficando cada vez mais evidente que existem grupos econômicos vinculados ao governo, que se beneficiam desta relação. É o Estado que autoriza as importações, escolhe os produtos que se beneficiam de subsídios, controla o fluxo de capitais, e assim por diante. Assim, quem tem bons amigos no governo pode realizar grandes lucros com facilidade. Não é uma novidade na história da Venezuela, as burguesias nacionais sempre cresceram deste jeito. O que mudou é o discurso socialista atual, bem contraditório com este fenômeno.
Qual será o impacto dos resultados das últimas eleições regionais?
O governo perdeu alguns bastiões importantes, entre os quais alguns dirigidos por políticos identificados com esta nova elite econômica ligada ao governo. Isso pode ser positivo para incentivar Chávez a renovar sua relação com os movimentos sociais, que mandaram um recado bem forte, especialmente nas favelas que não elegeram os candidatos oficiais. Do ponto de vista político, Chávez mostrou que dá o melhor de si quando perde, porque volta a lutar e a lembrar do projeto inicial. Quando ganha, fica soberbo e arrogante.
Confira os dados socioeconômicos do país, segundo o
Sisov (Sistema Integrado de Indicadores Sociais da Venezuela)
Gasto Público Social
Ano |
Gasto Público Social como %
do Gasto Público Total |
Gasto Público Social
como % do PIB |
1998 | 34,7 | 8,2 |
1999 | 38,5 | 9,4 |
2000 | 37,3 | 11,0 |
2001 | 38,4 | 12,1 |
2002 | 38,2 | 11,2 |
2003 | 39,0 | 12,1 |
2004 | 41,4 | 11,8 |
2005 | 40,6 | 11,6 |
2006 | 44,0 | 13,8 |
Pobreza e Indigência (1999 – 2007)
emestre | Pobreza |
Indigência |
1° Semestre 99 | 42,8 | 16,6 |
2° Semestre 99 | 42,0 | 16,9 |
1° Semestre 00 | 41,6 | 16,7 |
2° Semestre 00 |
40,4 | 14,9 |
1° Semestre 01 | 39,1 | 14,2 |
2° Semestre 01 | 39,0 | 14,0 |
1° Semestre 02 | 41,5 | 16,6 |
2° Semestre 02 | 48,6 | 21,0 |
1° Semestre 03 | 54,0 | 25,1 |
2° Semestre 03 | 55,1 | 25,0 |
1° Semestre 04 | 53,1 | 23,5 |
2° Semestre 04 | 47,0 | 18,6 |
1° Semestre 05 | 42,4 | 17,0 |
2° Semestre 05 | 37,9 | 15,3 |
1° Semestre 06 | 33,1 | 10,2 |
2° Semestre 06 | 30,6 | 9,1 |
1° Semestre 07 | 27,5 | 7,6 |
2° Semestre 07 | 28,5 | 7,9 |
Taxa Bruta de Escolaridade (1998 – 2006)
Ano |
Pré-escolar |
Básica | Ensino Médio e Profissional | Superior |
1998-99 | 44,7 |
89,7 | 27,3 | 21,8 |
1999-00 | 48,5 | 91,9 | 28,3 | 20,9 |
2000-01 | 50,6 | 95,1 | 30,1 | 25,0 |
2001-02 | 52,2 | 98,5 | 32,4 | 27,6 |
2002-03 | 53,3 | 97,8 | 32,7 | 28,4 |
2003-04 | 55,1 | 98,7 | 35,9 | 29,3 |
2004-05 | 58,6 | 99,0 | 38,5 | 30,3 |
2005-06 | 60,6 | 99,5 | 41,0 | 30,2 |
Taxa Líquida de Escolaridade (1995 – 2006)
Anos Escolares |
Pré-escolar |
Básica |
Ensino Médio e Profissional |
1998-99 | 40,3 | 82,8 | 21,6 |
1999-00 | 44,1 | 84,7 | 22,5 |
2000-01 | 44,3 | 87,1 | 23,7 |
2001-02 | 46,5 | 90,4 | 25,5 |
2002-03 | 47,5 | 89,8 | 25,9 |
2003-04 | 49,4 | 90,9 | 28,5 |
2004-05 | 51,7 | 90,7 | 30,6 |
2005-06 | 54,6 | 91,9 | 33,3 |
Distribuição da Renda por Quintilha (1998 – 2007)
Ano |
20%mais Pobres |
Parcela Intermediária |
20%mais Ricos |
1998 | 4,06 | 13,02 | 53,36 |
1999 | 4,36 | 13,22 | 51,90 |
2000 | 3,95 | 13,53 | 52,28 |
2001 | 4,45 | 13,07 | 49,55 |
2002 | 4,40 | 12,64 | 54,13 |
2003 | 4,01 | 12,96 | 52,83 |
2004 | 3,53 | 12,94 | 54,77 |
2005 | 4,63 | 15,87 | 52,36 |
2006 | 4,80 | 14,30 | 49,80 |
2007 | 5,24 | 13,80 | 47,61 |
Anos |
Coeficiente Gini |
1998 | 0,4865 |
1999 | 0,4693 |
2000 | 0,4772 |
2001 | 0,4573 |
2002 | 0,4938 |
2003 | 0,4811 |
2004 | 0,4559 |
2005 | 0,4748 |
2006 | 0,4422 |
2007 | 0,4200 |
Para saber mais:
Carlos Aponte Blank, “El gasto público social venezolano: sus principales características y cambios recientes desde una perspectiva comparada”. Revista Cuadernos del Cendes . V 23, N° 63, Caracas, 2006.
Programa Venezolano
de Educación-Acción en Derechos Humanos (Provea), “Derechos
Humanos y Coyuntura”, Vários exemplares de 2008.
Mauricio Phelan, “La desigualdad en Venezuela”, Fundación Escuela de Gerencia Social,
Caracas, 2007.
Instituto Nacional de Estadística (INE).
Sobre as missões:
Alberto Müller Rojas, “Adhocracia vs. Burocracia”, 29/12/07.
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