EFE
No próximo domingo, 25 de outubro, junto com as eleições presidenciais, irá a plebiscito no Uruguai a anulação da lei que consagrou a impunidade dos violadores de direitos humanos durante a última ditadura no país (1973-1984). Na noite da última terça-feira, milhares de pessoas cruzaram o centro de Montevidéu de um extremo ao outro, carregando fotos dos desaparecidos e assassinados na época, exigindo justiça e verdade e defendendo a anulação de uma lei que impede o julgamento dos responsáveis.
A passeata foi convocada, entre outras organizações sociais, pela Coordenadoria pela Anulação, a central única de trabalhadores PIT-CNT e a Universidade da República, que cobriu completamente sua fachada com uma faixa rosa – cor da cédula que deverá ser depositada nas urnas domingo.
“Tomara que domingo se confirme nossa fé em uma democracia sem privilégios: nem os da farda, nem os do dinheiro”, rogou o escritor Eduardo Galeano, um dos oradores do ato, no palanque montado no Obelisco da capital uruguaia. A lei já tinha sido submetida a referendo em 1989, mas na ocasião ela acabou mantida pelos eleitores. Galeano observou que, hoje, o contexto é outro e que naquela época ainda pairava “a longa sombra de uma ditadura que não queria ir embora”. Com a ascensão da coalizão de centro-esquerda Frente Ampla e os primeiros julgamentos de líderes da época (baseados em uma interpretação particular da lei de prescrição dos crimes), afirmou o escritor, ficou demonstrado que o Uruguai não era mais o país do “medo paralisante” e que foram abertas as portas para o “bom senso” triunfar no domingo.
O palanque também recebeu o argentino Adolfo Pérez Esquivel, que ganhou o Nobel da Paz em 1980 pela luta contra a ditadura militar em seu país. Para Esquivel, a lei de prescrição uruguaia “garante a impunidade jurídica” e, “sobre a impunidade, é impossível construir um processo democrático”. “A memória não é algo para ser deixado no passado; a memória nos serve para iluminar o presente. Os povos que não têm memória são os povos que desaparecem ou que voltam a cometer os mesmos erros”, disse.
Uma mudança cultural
A ditadura uruguaia e a coordenação da repressão com outros regimes militares do Cone Sul, por meio da Operação Condor, deixaram dezenas de filhos sem os pais. Muitas dessas crianças desaparecidas foram privadas de sua identidade e entregues para a adoção por famílias que colaboraram com o regime. Na terça-feira, seis desses filhos concederam uma entrevista coletiva para se pronunciar a favor da anulação da lei.
Victoria Julien e o irmão Anatole foram sequestrados em Buenos Aires em 1976 com a mãe, Victoria Grisonas, e levados para a Automotores Orletti, uma oficina mecânica que servia de fachada para um centro de tortura argentino. Seu pai, Roger Julien, foi assassinado pelos militares no mesmo dia. As crianças passaram pelo Serviço de Informação e Defesa das forças armadas do Uruguai e depois foram abandonadas em uma praça no Chile. “A anulação desta lei vai muito além do que pode ser um tema político. Tem a ver com a solidariedade”, acredita Victoria Julien. “Como um país enfrenta um passado ruim? Seguimos adiante, preocupamo-nos com a saúde, a educação e tudo o mais que importa, e nos esquecemos do espinho que nos incomoda lá atrás? Ou reconhecemos o que aconteceu?”, disse Anatole.
Os pais de Amaral García foram fuzilados em 1974. “O Uruguai sofreu a ditadura. Muita gente não se informou, não sente o que aconteceu com elas. Acreditam que talvez tenha acontecido com outros, mas na verdade aconteceu com todos. Nós somos a ponta visível, a cabeça do fósforo, a parte queimada. A anulação desta lei poderia trazer um pouco de justiça que faz falta. Estamos fartos. Estou farto especialmente porque isto aconteceu há tantos anos e ainda não houve justiça”, afirmou.
Mariana Zaffaroni foi sequestrada em 1976 em Buenos Aires com os pais, que continuam desaparecidos. “É importante para toda a sociedade criar um precedente. Desta vez aconteceu conosco, mas, em uma sociedade sem justiça para quem precisa, pode acontecer com qualquer um”, argumentou.
Carlos D'Elía nasceu no cativeiro no centro de tortura Pozo de Banfield, em Buenos Aires, em 1978. Seus pais, uruguaios, foram sequestrados na Argentina em 1977 e continuam desaparecidos. “Que seja feita justiça, que os crimes sejam julgados e que todos nós possamos conhecer a verdade”, pediu.
Macarena Gelman também nasceu no cativeiro em Montevidéu, em 1976. O pai foi assassinado e a mãe continua desaparecida. Gelman apelou para a “dimensão humana de toda a população do Uruguai”. Disse acreditar que, embora ainda haja “muita desinformação”, a informação tem aumentado com o passar dos anos. “Em 1989, o último plebiscito foi convocado em um contexto de medos, de dúvidas, inclusive pelo desconhecimento do que havia acontecido, pois acabávamos de sair da ditadura. Hoje, a situação não poderia ser melhor”, observou, lembrando os pronunciamentos dos três poderes do Estado em favor da inconstitucionalidade.
O que Victoria Julien gostaria de ter visto era “uma participação muito mais contundente” dos partidos políticos, já que se trata de um “momento único e histórico”. “Se não conseguirmos anular esta lei, talvez seja muito difícil termos outra oportunidade de realizar uma mudança que, para mim, é cultural”, alertou.
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