A seca que castiga grande parte do território argentino agregou um novo capítulo ao conflito permanente entre o governo de Cristina Kirchner e os ruralistas, que pode levar a um novo locaute no final deste mês.
O governo reagiu à situação dramática, que afetou todas as regiões onde se concentra a produção agrícola – e, em particular, os campos de soja –, concedendo no início de fevereiro novos subsídios e benefícios fiscais para os produtores mais castigados.
A mesa de discussão à qual sentam-se as quatro principais entidades do setor rural manteve a política de confrontação, rechaçou as medidas fiscais e ameaçou novas reações para a terceira semana do mês: quatro dias sem comercializar grãos e cabeças de gado no mercado doméstico, mas sem bloqueios em estradas como os que deixaram cidades sem alimentos no ano passado.
Para tentar evitar um novo protesto, o governo convocou nesta semana o Conselho Econômico e Social, órgão que reúne trabalhadores e empresários e conta com a chancela da União Industrial Argentina. Mas os ruralistas ainda não confirmaram presença.
“As medidas do governo não existem. São um paliativo nulo e decidido de maneira tardia”, declarou ao Opera Mundi Miguel Calvo, vice-presidente da Associação da Cadeia de Soja Argentina (Acsoja), que agrupa todos os setores do ramo. O “ouro verde” gerou em 2008 uma injeção de recursos da ordem de 15,6 bilhões de dólares, equivalente a 24% do total vendido para o exterior.
Os sojeiros, em guerra contra os impostos cobrados sobre a exportação, encontraram na seca um argumento que pode reavivar a tensão social que consumiu em poucos meses parte do capital político e da imagem positiva construídos durante os quatro anos do mandato de Néstor Kirchner (2003-2007). Os especialistas da Acsoja prevêem que a produção pode cair 10% se a situação não se reverter.
“A seca confronta o setor produtivo com uma mudança de cenário e por isso a atuação pública é essencial”, disse o economista Aldo Ferrer, figura destacada do universo acadêmico e político argentino, fundador do grupo Fênix, que costuma apoiar o governo.
Segundo ele, os subsídios de 230 milhões de pesos anunciados pelo governo para os pequenos produtores afetados faz parte do conjunto de medidas anticrise que integra as obras públicas às linhas de créditos ao consumo. Mas os sojeiros não estão satisfeitos.
“O governo sugere mexer na cobrança de impostos por causa da situação de emergência, mas cobrando juros de 14%. Não mencionam o aumento do crédito que o setor precisa”, protesta Miguel Calvo, cuja entidade agrega, como sócios plenos, os principais atores do complexo de oleaginosas, incluindo a Sociedade Rural (SRA) e a Câmara da Indústria de Azeite da República Argentina (Ciara), representando os grupos que monopolizam o setor: Bunge Argentina, Cargill, Molinos Río de la Plata e Nidera.
Frente aos protestos, Ferrer destaca que o Conselho Econômico e Social “é o lugar apropriado para discutir os problemas setoriais e resolver pendências entre o governo e o campo”. Ele também acha que não é legítimo confundir a emergência da seca com outros temas estruturais para tentar voltar a discutir os impostos retidos na exportação de grãos.
O economista analisa que a seca “se soma a uma agenda política complicada por causa do ano eleitoral” – haverá eleições legislativas em outubro. Por outro lado, diz ele “alguns agentes econômicos nunca se sentem satisfeitos com as medidas do governo: é uma prática negociadora que se consolidou no marco do conflito campo – governo”.
Um pouco de chuva para aliviar
Apesar de o Serviço Nacional de Meteorologia não prever chuvas suficientes para reverter o déficit atual até o mês de julho, no início de fevereiro choveu um pouco, o que trouxe um certo alívio aos produtores. “A chuva melhora sensivelmente as perspectivas. Estávamos na UTI, em coma nível 4, mas agora baixou a febre do paciente”, afirmou Calvo. Pela escala de Glasgow, o nível de consciência varia de 3 a 15, sendo 3 a mais grave.
A maior concentração de soja na Argentina, num raio de 250 quilômetros ao redor da cidade de Rosário (centro do país), foi uma das mais favorecidas pela chuva. Dessa forma, a produção poderia se manter acima do piso de 40 milhões de toneladas.
Ontem (10), após a entrevista, choveu na “pampa úmida”, favorecendo mais uma vez os cultivos de soja. Mas em relação ao milho e ao girassol, as perdas são irreparáveis.
O vice-presidente da Acsoja acha que, com ou sem seca, o governo deveria rever suas políticas para o setor. Fazendo um certo rodeio, o que ele sugere é o fim da cobrança sobre a exportação desta commodity.
A direção da Acsoja estima que a seca vai reduzir a produção em 10 milhões de toneladas, ou seja, os produtores vão faturar 2,7 bilhões de dólares a menos. De modo que o Estado deixaria de arrecadar cerca de 900 milhões de dólares só com a soja que deixaria de ser exportada. Por outro lado, o impacto da seca será compensado por uma redução no preço das sementes e do arrendamento das terras, equiparando os lucros aos níveis de 2007.
Há problemas também em outros setores ruralistas. Os produtores de leite, por exemplo, protestam porque as empresas que industrializam a produção não cumprem o compromisso firmado com o secretário de Comércio, Guillermo Moreno, alvo predileto das críticas da oposição, de pagar um peso (0,65 real) por litro. Eles argumentam que é inviável pagar os custos de produção. O governo prometeu subsídios vultosos a alguns empresários que disseram não poder pagar mais de 0,75 peso por litro.
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