Miguel Travella é um dos argentinos que abandonaram a pecuária para plantar soja. Quando recebe visitantes em sua fazenda, a cerca de 40 quilômetros de Rosário, o agricultor de 45 anos faz questão de mostrar para eles um curral com uma dúzia de vacas. “Mantenho esse pequeno grupo para lembrar do passado. Na minha família sempre gostamos de gado, é uma atividade que fica no coração de todos os argentinos. Chegamos a ter 4 mil animais! Mas, agora, não dá mais. Vendi tudo para me dedicar à agricultura, é bem mais rentável!”, conta.
A mudança foi bem sucedida: em dois anos, ele conseguiu substituir o velho caminhão por um modelo mais recente, com tração 4×4. “Tudo isso graças ao ‘boom’ da soja!”, conclui, com um grande sorriso.
Travella tem a fé dos convertidos. Não para de exaltar a soja transgênica, a principal explicação para a alta rentabilidade. Em 1996, a empresa norte-americana Monsanto introduziu na Argentina o famoso “pacote tecnológico”: uma semente geneticamente modificada, mais robusta, e um herbicida muito poderoso, o glifosato. Os agricultores optaram pela inovação com entusiasmo. Hoje, 97% da soja argentina é transgênica.
“Antes, eu tinha que usar cinco herbicidas diferentes para matar todos os tipos de ervas parasitas. Agora é mais fácil, já que o glifosato mata absolutamente tudo, exceto a soja, que foi projetada para resistir a este produto”, explica Travella.
A produtividade de sua fazenda aumentou 30%. Com o dinheiro, ele conseguiu comprar uma semeadora concebida na Argentina, que consegue plantar a semente sem arar a terra, o que representa uma poupança de tempo extraordinária. O agricultor faz agora em um dia tarefas que tomavam três semanas no começo da década.
A expansão da soja parece não ter limite. O cereal saiu ainda mais fortalecido da seca do ano passado. Como é mais resistente que outros grãos, os agricultores têm aumentado a quota. A oleaginosa passou a ocupar 60% da área agrícola total (19 milhões de 31 milhões de hectares). Em 2008, a safra deu 50 milhões de toneladas, exportadas quase em sua totalidade, já que os argentinos não comem soja. O Brasil e a Argentina são, respectivamente, o segundo e o terceiro maior produtores mundiais da oleaginosa, atrás dos Estados Unidos.
Larga escala: soja ocupa 60% da área agrícola argentina
Arranha-céus
O boom da soja transformou a província de Santa Fé, cujo centro é Rosário, a segunda maior cidade do país. Desde 2003, arranha-céus e condomínios privados surgiram próximos ao rio Paraná, todos construídos por uma elite que enriqueceu rapidamente com a soja. O núcleo dessa riqueza é a Bolsa de Valores de Rosário, que fica no centro da cidade. Lá, todos os anos, vendem-se cerca de 35 milhões de toneladas de cereais, dos quais 60% soja.
“A atividade cresceu muito nos últimos cinco anos”, reconhece Agustin Lezcano, vice-diretor da bolsa. Após ter ultrapassado a de Buenos Aires, a bolsa de Rosário tem agora ambições internacionais. “Queremos nos unir à Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM & F) de São Paulo e com nossos colegas do Uruguai e do Paraguai. Desse jeito, vamos criar um novo produto: a soja da América do Sul”, revela.
As negociações são árduas, mas o objetivo, fundamental: deixar de depender tanto da bolsa de cereais de Chicago (CBOT), a maior do mundo. “Hoje, o preço da nossa soja é em parte ditado pelas condições meteorológicas nos Estados Unidos. É um absurdo. Especialmente lembrando que a produção conjunta dos quatro países ultrapassa a dos Estados Unidos”, justifica o vice-diretor.
Rosário se tornou incontornável no panorama mundial da soja graças à sua localização estratégica: a cidade é cercada de terras férteis e regada pelo rio Paraná, que originou a criação de um grande porto. Milhões de toneladas de grãos são transportados para esta zona industrial, para ser transformados em farinha ou em óleo de soja – a Argentina é o líder mundial do produto – antes de ser enviados para os quatro cantos do planeta. Com suas fábricas espalhadas por 70 quilômetros ao longo do rio, é um dos principais pólos agroindustriais do mundo.
Altamente tecnológica, a nova agricultura exige cada vez mais capital e menos mão de obra, provocando uma concentração de terras. O número de fazendas diminuiu 20% entre 1988 e 2002, enquanto o tamanho das propriedades passou de 469 hectares para 588 hectares. Os números escondem uma concentração, ainda mais importante, já que uma grande parte dos pequenos agricultores que não vendeu sua terra tampouco a cultiva. Eles preferem fazer negócios com grandes proprietários, que estão sempre à procura de uma plantação mais extensa de cereais, principalmente soja.
O maior símbolo dessa nova gestão é Gustavo Grobocopatel, diretor da empresa Los Grobos, que fatura 600 milhões de dólares e produz anualmente 2,5 milhões de toneladas de grãos. Na Argentina, ele é apelido de “Rei da Soja”, um título que não gosta. “Eu não sou um rei, meu estilo de vida é simples. Aliás, minha empresa não possui nada: dos 250 mil hectares que semeamos, nenhum é nosso, tudo é arrendado!”, insiste. O esquema se repete com as máquinas: Los Grobos não tem nenhum trator, tudo é terceirizado.
“Fazemos agricultura sem terra e sem máquina. Essa é a empresa moderna. O que conta não é a propriedade da terra, é o conhecimento e a gestão”, prossegue o executivo. Ele classifica seu modo de gestão “em rede”. Segundo o engenheiro agrônomo, dessa forma o grupo se torna mais “coordenador” de várias empresas do que “proprietário”. E quando o solo argentino já não basta, ele arrenda fazendas nos países vizinhos. Seu império inclui agora terras no Brasil, Uruguai e Paraguai. “Los Grobos é uma das únicas empresas realmente do Mercosul!”, ironiza.
Conceitos ultrapassados
Grobocopatel não consegue ficar em um só lugar. A sede da empresa está em Carlos Cassado, a mais de 300 quilômetros de Buenos Aires. O empresário se hospeda na capital argentina para uma parte das negociações, e passa uma semana por mês em Goiânia, no Brasil. No resto do tempo, é convidado para lecionar em universidades norte-americanas sobre seu modelo de negócio. “Os pesquisadores dizem que Los Grobos é a Toyota da agricultura”, resume com orgulho.
Considerando que nos tempos modernos a propriedade da terra não importa mais, esta nova geração de produtores não quer ouvir falar de críticas do governo ou da esquerda argentina contra os latifundiários. “É um conceito ultrapassado”, afirma Grobocopatel. Assim como a reforma agrária, que nunca aconteceu na Argentina.
Grobocopatel passa uma semana por mês em Goiânia
Leia também:
Primeira parte – A luta da pecuária para sobreviver ao avanço da soja
Terceira parte – Disputa entre governo e agronegócio teve lances de tragédia grega
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