A disparada dos preços dos grãos, especialmente da soja, tem aguçado o apetite do governo argentino. Desde a crise no final de 2001, o país quase não tem acesso aos mercados de capitais internacionais. Em consequência, sua credibilidade econômica e financeira depende da capacidade de obter receitas fiscais elevadas e até superávits fiscais. Em 2002, a taxação sobre exportações de grãos apareceu como tábua de salvação para o governo do então presidente Eduardo Duhalde. As chamadas “retenções” aumentaram gradualmente, de 10% para 35%. Elas são fundamentais para o equilíbrio das contas públicas, pois representam 25% da receita. A metade desse montante vem da soja.
No começo de 2008, a presidente Cristina Kirchner decidiu aproveitar os preços historicamente elevados da oleaginosa para aumentar a taxa até 45%. Em contrapartida, a nova lei previa uma redução quando os preços caíssem. A proposta provocou revolta entre os agricultores. “Quando soube que o governo queria imposto de 45%, enlouqueci. Juro, não dava mais para me reconhecer”, lembra o produtor de soja Miguel Travella.
Ele, que se vangloriava de não gostar das brigas políticas, virou um militante fanático, um adversário do governo. Junto com colegas da região, participou dos bloqueios nas entradas das cidades, para provocar falta de alimento. “Chegamos com nossos carros e ficamos nas estradas. É uma loucura. Normalmente, sou totalmente contra deste tipo de medida, mas não tinha jeito, o governo não entendia nada”, conta.
Nas cidades, especialmente em Buenos Aires e Rosário, a classe média apoiou na sua maioria as reivindicações dos agricultores. A oposição tentou pegar carona na crise para desgastar a imagem da presidente eleita seis meses atrás. Na Plaza de Mayo, na capital, centenas de jovens desfilavam com cartazes que traziam mensagens como “Estou com o campo” e gritando: “Argentina! Argentina!”.
O governo decidiu não negociar com os produtores enquanto não pusessem fim aos bloqueios. No dia 25 de março de 2008, Cristina chegou a ironizar que “o país passou dos piquetes da miséria e da tragédia aos piquetes da abundância”. Ela assegurou que não se deixaria “extorquir”. As quatro principais entidades agrícolas do país retrucaram que não iam ceder, a menos que o governo anulasse o aumento do tributo.
Veia o discurso de Cristina no dia 25 de março de 2008:
O impasse durou meses, até que Cristina Kirchner pediu ao Congresso para decidir se o governo poderia ou não aumentar os impostos. O desfecho da crise foi digno de uma tragédia grega, na noite do dia 17 de julho de 2008. Depois de quase 18 horas de sessão no Senado, os votos chegaram a um empate. Nesses casos, cabe ao presidente do Senado desempatar. No caso, Julio Cobos, também vice-presidente do país.
Eram 4h20 da madrugada quando o ex-governador de Mendoza tomou a palavra, sem disfarçar seu mal-estar. “Que a história me julgue, peço perdão se estiver enganado”, começa, para depois concluir: “Meu voto não é positivo, meu voto é contra”. Com sua decisão, ganharam as entidades agropecuárias e se desencadeou a crise institucional mais grave do país desde os acontecimentos de 2001 e a ascensão de Néstor Kirchner como presidente em 2003. Um vice contra os interesses do governo.
Veia o discurso de Julio Cobos no dia 17 de julho 2008:
O governo tinha se preparado para uma oposição, mas teve de enfrentar um tsunami. Nas negociações com as entidades agrícolas, Cristina Kirchner esperava ter o apoio da uma das mais importantes, a Federação Agrária, considerada mais progressista que a conservadora Sociedade Rural. A primeira reúne pequenos agricultores. A segunda, os maiores proprietários, membros da elite latifundiária.
Em geral, as duas entidades se odeiam. Não desta vez: as quatro principais organizações reuniram-se para enfrentar o governo. “Naquela época, não tínhamos entendido que o fenômeno das terras arrendadas tinha transformado a estrutura política do mundo agrícola”, reconhece um funcionário do Ministério da Economia, pedindo anonimato.
Aqueles que eram considerados pequenos agricultores tinham começando a viver de rendimentos, não mais de trabalho. Ou seja, quanto mais os grandes produtores de soja ganhavam, melhor para eles. Assim suas terras eram arrendadas a um preço mais alto. “Pela primeira vez, os interesses econômicos dos pequenos agricultores e dos latifundiários coincidiram. E como há anos não fazemos um censo da agricultura, não percebemos a importância desta mudança sociológica e política”, completa o economista.
Mídia
Não é a única razão da derrota. O governo teve que enfrentar uma intensa campanha de mídia, orquestrada pelos principais jornais e canais de televisão da Argentina. “Esta crise, em 2008, permitiu ver a potência do que chamo de complexo agromidiático”, analisa Horacio Verbitsky, jornalista e escritor. Ele lembra que os laços econômicos entre os dois setores estão se tornando cada vez mais profundos. Por exemplo, Clarin e La Nación, os dois principais jornais do país, são os proprietários da Agro Expo, a principal feira agrícola argentina, que fatura 300 milhões de dólares anualmente.
O principal porta-voz desta imprensa é o jornalista Héctor Huergo, que há um quarto século dirige o Clarin Rural, suplemento agrícola do diário. Ele não disfarça seu alinhamento com os interesses dos grandes proprietários de terras, contra o governo. “As retenções são altas demais, o setor não pode pagar tanto”, assegura. Para ele, o argumento do governo de recuperar estes fundos para financiar uma política social não é válido. “O governo tira dinheiro da camada mais produtiva e inovadora da sociedade, que é o setor rural, para passá-lo a pessoas improdutivas, que são incentivadas a não trabalhar para aproveitar de subsídios”, diz o redator-chefe.
Huergo: as retenções são altas demais
Verbitsky enfatiza como esta retórica conseguiu convencer uma grande parte dos argentinos: “Graças a um bombardeio midiático sem precedentes na história, o setor agropecuário fez passar a idéia que era o único motor econômico da Argentina, e que, em consequência, qualquer imposto sobre suas exportações era equivalente a um furto, um atentado contra a pátria”.
É também a força da mídia que explica a ausência total de debate na Argentina sobre transgênicos. As pesquisas publicadas no resto do mundo para questionar os eventuais perigos das modificações genéticas são silenciadas pelos principais jornais e pela televisão. “A maioria da população nem se pergunta mais o que come. O glifosato está provocando problemas sérios de saúde, mas ninguém presta atenção. É muito difícil pautar nossas ideias”, confirma Adolfo Boy, diretor da ONG Reflexão Rural.
Para o senador Eric Calcagno, um político próximo ao casal Kirchner, o setor agropecuário conseguiu uma excelente operação simbólica, destacando os valores tradicionais da terra, tais como trabalho e tradição, contra a classe política, mal avaliada pela maioria da população, e os impostos, sempre impopulares. Ele acredita que, além das ligações financeiras entre os setores da agricultura e da imprensa, outra razão explica a ânsia da mídia para ajudar a campanha do campo. “A grande mídia sabia que a próxima reforma prevista pelo governo era a lei de radiodifusão, para reformar a legislação que vem da ditadura. Então, fizeram todo o possível para enfraquecer o governo antes”, afirma Calcagno.
Vitória
Esta estratégia, se existiu, foi apenas parcialmente bem-sucedida. Após um ano de tempestades políticas, o casal Kirchner perdeu as eleições parlamentares de junho. Mas em outubro, o governo ganhou a batalha contra a grande mídia, com a aprovação pelo Congresso da lei de radiodifusão. Com esta vitória, Cristina Kirchner rompeu uma tradição da política argentina segundo a qual todo governo que perde uma eleição no meio do mandato está condenado a abandonar todo projeto de reforma até o fim, ou até deixar o cargo antecipadamente.
A resistência da presidente provocou a raiva dos agricultores. “Ela não entendeu o recado das eleições, tinha que parar com seus projetos”, resmunga o produtor de soja Miguel Travella. Um ano e meio depois do começo da crise, as tensões entre o governo e o setor agropecuário são ainda palpáveis.
“O aumento dos preços mundiais de cereais colocaram o setor agropecuário em uma posição privilegiada. Agora, eles querem se transformar em uma potência hegemônica, tal como fizeram no passado os militares e uma parte da igreja católica”, diz Eric Calcagno. Campo, igreja, forças armadas: as três entidades se caracterizaram nos últimos 60 anos pela oposição ao peronismo. Hoje encarnado pelo casal Kirchner, o fenômeno político tem, de fato, suas raízes nos subúrbios das cidades industriais, e não no campo ou na caserna.
O debate acerca do peso dos tributos sobre as exportações agrícolas vai muito além da discussão técnica. Enquanto os proprietários exigem maior margem de manobra para aumentar os benefícios de suas exportações, eles empurram a Argentina de volta ao modelo primário de desenvolvimento: vender matérias-primas e importar produtos mais sofisticados.
“O problema deste modelo de desenvolvimento é que ele não tem lugar para os 40 milhões de argentinos. Esquecemos que a quando a Argentina era o “celeiro do mundo”, como era chamada naquela época, a grande maioria da população vivia na pobreza. Foi a industrialização que permitiu o surgimento de uma classe média”, conclui Eric Calcagno.
Travella: governo não entendeu o recado das eleições
Leia também:
Primeira parte – A luta da pecuária para resistir ao avanço da soja
Segunda parte: “Rei da soja” não possui um hectar sequer
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