O ano de 2008 marcou a “desinterdição” da discussão sobre o regime militar no Brasil. Enquanto isso, Argentina, Chile, Uruguai e Peru estão na dianteira. Os agentes estatais responsáveis por violações aos direitos humanos são investigados e punidos, inclusive com a condenação de um ex-presidente, o peruano Alberto Fujimori, sentenciado a 25 anos de prisão.
As ações do Ministério Público e da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), além das manifestações de autoridades do governo, como os ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos), não foram suficientes para tirar do país a condição de “exceção” em termos de impunidade na América Latina, na opinião do procurador da República Marlon Alberto Weichert. Leia a segunda parte da entrevista, em que ele também rejeita a tese de que a punição dos torturadores pode levar à instabilidade política.
Por que o Brasil escolheu o caminho de esquecimento enquanto outros países da América Latina optaram por punir os crimes dos regimes de exceção?
Tecnicamente, eu diria que o Judiciário brasileiro talvez tenha maior resistência em aceitar a interferência do direito internacional no âmbito interno. Também me parece que todo o período de transição do regime autoritário para o democrático foi costurado e negociado às custas de uma política de esquecimento e silêncio. Romper esse pacto é algo muito difícil.
E esse foi o grande mérito de 2008. Conseguimos desinterditar a discussão sobre o tema ditadura militar. Esperamos que 2009 seja o ano do avanço, o ano em que se consolide, seja pelo STF, seja pelas instâncias internacionais, a idéia de que no Brasil permanece em aberto a possibilidade de responsabilizar os autores de crimes contra a humanidade durante a ditadura.
Comparando com os outros países, houve um aspecto político da transição que impregnou o sistema jurídico, criando essa proibição de sequer se falar sobre o assunto. A Argentina foi a primeira a levar a sério a questão da produção da verdade e da responsabilização. O Chile só começou esse processo porque recebeu a condenação da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) em 2006. Recentemente, até o Paraguai e o Uruguai já estão produzindo condenações criminais e investigações.
Existe risco de retrocesso democrático ou instabilidade política com a possível punição dos crimes da ditadura?
Hoje, as instituições estão 100% maduras e saudáveis para encarar essa discussão, seja qualquer for a conclusão. Não vejo em absoluto qualquer risco institucional, pelo contrário. Imaginar que possa haver um recuo democrático é quase que zombar da maturidade das instituições brasileiras. É até zombar das próprias Forças Armadas, que tem plena consciência de seu papel democrático e constitucional. Esses trabalhos que nós temos desenvolvido não trazem nenhum risco de retrocesso à estabilidade do país. Na verdade, é preciso que passemos por esse processo, para que haja um amadurecimento e aí sim a passagem de uma fase para outra.
A punição aos militares pode abrir caminho para processos também contra quem aderiu à luta armada?
Crimes contra a humanidade só podem ser cometidos por agentes estatais. Portanto, não há sinal ou indício de que os opositores do regime tenham praticado crimes que pudessem ser tachados de imprescritíveis nem ser alvo de anistia. Os opositores do regime praticaram crimes políticos, muitas vezes crimes comuns e, eventualmente, alguns atos de terrorismo – o que também é condenado gravemente pelo direito internacional, considerado um crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível.
Mas o conceito de terrorismo pressupõe a prática de atos contra a população civil como forma de chantagem, de pressão sobre um governo legítimo, o que não era o caso. Esses dois fatores diferenciam o terrorismo do ato de resistência. Um desses elementos já está ausente: a existência de um governo democrático, legítimo e constitucional. A utilização de alvos civis por parte de grupos de dissidência ao regime como forma de chantagem e pressão foi muito pequena. Eles praticaram atos violentos, mas sempre diretamente contra o regime.
E é preciso lembrar que essas pessoas foram investigadas, processadas e cumpriram pena. Há uma diferença abissal entre o tratamento de um lado e de outro. Os que praticaram a violência da tortura, do homicídio, do desaparecimento forçado, como política de Estado, jamais foram investigados ou processados.
Há exagero no número ou no valor das indenizações pagas às vítimas de perseguição política?
No número de indenizações, não. O que ocorre é que a lei que instituiu o programa de reparação às vítimas vivas da perseguição é muito ruim. A primeira lei que tratava da indenização aos familiares de mortos e desaparecidos é bastante adequada, com um cálculo baseado na expectativa de vida, um valor mínimo de 100 mil reais. Não houve nenhum caso que tenha ultrapassado R$ 160 mil.
Mas o critério para o cálculo da reparação aos vivos foi totalmente diferente, baseado numa presunção dos prejuízos econômicos que aquela pessoa tenha sofrido em função da perseguição. Começou-se a calcular o número de salários que essa pessoa teria recebido até hoje e, num exercício de adivinhação, projetando as promoções e aumentos salariais, criando uma imensa bola de neve.
A contradição é tão forte que o Estado acaba por tratar com maior rigor o morto do que o vivo, uma vez que os perseguidos ainda vivos recebem valores muito superiores aos familiares daqueles que sofreram o pior, que é ter sido morto pelo regime ou estar desaparecido até hoje. O mínimo que a legislação deveria ter previsto era um teto indenizatório.
Mas ainda há uma distorção maior, que é chamar isso de Comissão de Anistia. Não se está anistiando essas pessoas, se está indenizando. Porque anistiar é perdoar e essas pessoas não têm que ser perdoadas por nada. Elas foram vítimas e as vítimas não podem ser anistiadas.
Leia mais:
Parte 1 – Impunidade dos crimes da ditadura gera violência policial no Brasil
Parte 3 – Extradição de uruguaio pode abrir espaço para ações no Brasil
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