Uma aula de história, um grande nome do cinema internacional, e duas horas de transmissão televisiva com recorde de crítica e público. Parece não dar liga, mas o especial “La Più Bella del Mondo” (“A Mais Linda do Mundo”), apresentado pelo ator e cineasta italiano Roberto Benigni, foi uma lição intensiva de cidadania no horário nobre do canal estatal Rai 1, transmitida no dia 17 de dezembro ao vivo para toda a Itália. A mais linda do mundo, no caso, é a Constituição italiana. O tour de force de Benigni levou a um público estimado em 12,6 milhões de telespectadores uma fábula jurídica sobre a criação e a essência da lei fundamental do Estado italiano, que revelaria “a solução para todos os problemas do país”.
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A Constituição da República Italiana foi promulgada pelo então chefe provisório de Estado Enrico De Nicola em 27 de dezembro de 1947. A Assembleia Constituinte foi formada por 556 homens e mulheres eleitos 18 meses antes através das primeiras eleições livres no país desde 1924, que também significaram a vitória do sistema de governo republicano contra a monarquia. As mães e os pais constituintes, conta Benigni, tinham a missão de escrever a Carta constitucional de um país castigado por duas décadas da ditadura fascista de Benito Mussolini e devastado pela Segunda Guerra Mundial.
O comediante vê poesia na Constituição Italiana. “Enquanto a lei proíbe, veta, a Constituição favorece, incentiva, diz ‘vai!’. Enquanto a lei aterroriza, a Constituição nos protege, nos quer bem.” A Carta italiana seria a “lei do desejo”, e assim a Itália, país-sede do catolicismo, iria na contramão da lei divina dos Dez Mandamentos: “Os Dez Mandamentos estão cheios de ‘não’. ‘Não deseje isso, não deseje aquilo…’ A Constituição é um grande sim: deseje! As necessidades podem ser aplacadas; os desejos, jamais.”
A Carta italiana seria como as amarras que prenderam Ulisses ao barco, evitando que ele caísse vítima das sereias que tentaram atraí-lo com seu canto e sua beleza. Os artigos e princípios expressos na Constituição evitariam que o povo italiano se deixasse seduzir por políticos manipuladores, que usam o medo e as dificuldades sociais e econômicas para convencer os eleitores a conceder-lhes o poder. Mas toda essa poesia não conseguiu evitar fenômenos como Silvio Berlusconi, que no fim do ano passado declarou que pretende se candidatar pela sexta vez ao governo italiano nas eleições parlamentares previstas para 24 e 25 de fevereiro. Benigni, aliás, dedicou a primeira meia hora de programa ao ex-primeiro ministro, “o único homem na Itália que pode se aposentar quando quiser mas que não o faz de jeito nenhum”: “Ele diz que está todo mundo contra ele, mas a essa altura está claro que é ele quem está contra nós.” Seu retorno divide a Itália: “metade é contra, e a outra metade está desesperada.”
Benigni lê e comenta os 12 princípios fundamentais da Constituição com paixão, tentando injetar autoestima e entusiasmo no coração dos italianos, que respiram o ar pesado da crise econômica e da falta de perspectivas. O pessimismo se reflete nos rostos e nas conversas cotidianas, principalmente entre os mais jovens. O desemprego que beira os 12% contrasta com a primeira frase do primeiro artigo da Constituição: “a Itália é uma república democrática, baseada no trabalho”. Essa afirmação não tem uma conotação de classe, pois não fala em trabalhadores, mas sim na contribuição que cada cidadão pode dar na construção do país, diz Benigni: “Trabalho significa compromisso. Se não há trabalho, tudo vem abaixo: a república e a democracia, que são o corpo e a alma das nossas instituições.”
O artigo terceiro estipula que “todos os cidadãos possuem a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opinião política, condições pessoais e sociais”. Para Benigni, é uma declaração que antecipa os hippies e a canção “Imagine”, de John Lennon, sobre o sonho de paz e amor entre homens e mulheres de boa vontade. A condição das mulheres é destacada por Benigni, que lembra que “a grandeza e a civilidade de uma nação podem ser medidas pelo estado social das mulheres”. Há muito o que caminhar nesse sentido na Itália, país assolado por um machismo misógino e agressivo e que enfrenta uma emergência de feminicídio.
O fanatismo nacionalista promovido pelo regime fascista é fulminado pelo artigo 10, que declara a conformação do país às normas internacionais, e 11, que estabelece o repúdio à guerra. Benigni aproveita o ensejo e faz uma defesa da União Europeia e do euro. Para o comediante, a ideia de um continente unido em paz, “os Estados Unidos da Europa”, é um sonho. “Os nossos constituintes nos dizem para mantermos nossas raízes, mas elas não devem afundar na escuridão de sua própria história. Elas devem se alargar na superfície, como ramos que se encontram, como mãos que se unem.”
A fábula constitucional de Benigni, afinal, é uma tentativa de recordar à Itália e aos italianos a importância de tutelar os valores que construíram o Bel Paese e o tornaram referência em todo o mundo: o trabalho, a pesquisa, a cultura, a ciência, os direitos. E também reavivar o orgulho de um povo anestesiado por quase trinta anos sob o império midiático de Silvio Berlusconi. A “mais linda do mundo” reflete a beleza do povo que a escreveu, e pode ser a salvação do país, acredita Benigni: “Quando essa Constituição entrar em vigor será uma coisa maravilhosa!”
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