Matias Maxx / Vice Brasil
Flor (ou “bud”) de maconha. Apenas essa parte da planta é fumada; o caule pode ser utilizado para confecção de fibras e outros materiais
“Se você sobe o morro pra buscar e leva porrada, se liga, sangue-bom, tem alguma coisa errada.” Com esses versos, o Planet Hemp abria o disco “Usuário”. A música se chamava “Não Compre, Plante!”. O resto da história todo mundo conhece: perseguição, prisão, liberdade, sucesso.
Caso o art. 28, § 1º (cultivo para uso próprio) da lei de drogas fosse respeitado, ninguém iria preso por simplesmente plantar maconha. Ainda assim, mesmo quando acusados de tráfico, os cultivadores deveriam ser beneficiados pela decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal que torna inconstitucional o artigo 44 da mesma lei garantindo a liberdade provisória para pequenos traficantes de menor potencial ofensivo. Mas, na prática, não é o que acontece: pessoas aguardam encarceradas semanas ou meses até terem a chance de provar que eram reles cultivadores.
Plantar maconha não é difícil – tampouco caro. Mas a proibição complica tudo, e é muito arriscado cultivar em exterior, pois denúncias de vizinhos, transeuntes ou desafetos são a maior causa de encarceramentos por se plantar maconha. Então, na maioria das vezes, os cultivadores têm de literalmente entrar no armário, utilizando lâmpadas e timers para simular a ação do sol sobre as plantas. Desde 2002, vários desses “fazendeiros de apartamento” se organizam no fórum online Growroom, em que, além de informações sobre técnicas de cultivo, discutem legislação e, infelizmente, colecionam casos de cultivadores presos.
O candango Gabriel já fumava desde 2002, quando tinha 13 anos, mas só começou a ensaiar seus cultivos três anos depois, após ter conhecido o Growroom, e adotou o nickname de Sativa Lover. A princípio, plantava apenas para conseguir alguma coisa de qualidade para fumar, mas, aos poucos, o cultivo foi se tornando paixão. De 2009 a 2011, ele se dedicou a isso estudando o assunto de cinco a seis horas por dia. “Eu não só cultivava, mas buscava também fazer melhoramentos genéticos. Mas esses melhoramentos não vêm de nenhum processo químico pra aumentar a potência da droga em laboratório, como dizem. É a simples arte de observar. Nada muito diferente do que é feito em um canil.”
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Sativa Lover foi preso no dia 4 de junho de 2011, um dia após participar da “Marcha da Pamonha”, nome dado à manifestação que ocorreu em Brasília no lugar da Marcha da Maconha, que foi proibida em cima da hora. Na época, SL tinha um growbox com duas lâmpadas de 400 watts para o período vegetativo e um armário com 260 watts, onde eram mantidas matrizes e clones. A floração era feita ao ar livre. Embora possa impressionar leigos, a configuração de Sativa apenas mantinha sua autossuficiência herbífuma, com direito a variedades de fumo.
Gabriel foi acusado segundo o artigo 33 com dois agravantes: o parágrafo 1º I e o III com 35. Segundo a promotoria, ele e sua mãe estavam associados para o tráfico. Para livrar a mãe da prisão, ele acabou assumindo e assinando a confissão do crime. A promotora queria condená-lo à pena máxima: 15 anos. Mas o juiz acabou lhe dando sete anos em regime fechado. Perguntei-lhe como foi a recepção no cárcere, uma vez que, injustamente acusado de tráfico, ele não tinha nenhuma conexão com o crime organizado. “Fui muito bem recebido, diga-se de passagem. Não por parte dos agentes, óbvio. Mas como quase todo mundo na cadeia fuma maconha, virei atração. Cada cela nova [em] que eu chegava era um festival de perguntas – e, claro, muita fumaça.” Depois de cumprir dois anos em regime fechado no presídio PDF I e mais um ano no semiaberto no CPP, hoje Sativa se encontra em prisão domiciliar. “O próximo passo é a liberdade condicional. No fim de 2016, termino de cumprir minha sentença, mas só serei totalmente livre no dia em que puder fazer o que eu amo, que é cultivar.”
De uma maneira ou de outra, Sativa Lover já está do lado de fora, mas outros membros do fórum presos por plantar não têm a mesma sorte. Rafael, conhecido como Rasta, é cantor do grupo Ganjah Team Revolucionário. Ele já havia cumprido pena de seis meses após ter sido preso comprando maconha de um traficante que já estava grampeado e monitorado pela polícia. Por conta desse episódio, ele começou a cultivar em um sítio na região de Caçapava, Vale do Paraíba. Em novembro de 2012, após denúncia, a polícia invadiu o sítio, que estava vazio, e apreendeu 58 plantas. Através de uma correspondência encontrada no local, chegaram a Rafael, que foi condenado a sete anos e dois meses. Ele continua preso.
Conversei com o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), que protocolou há quase um ano um projeto que regulamenta o cultivo e o comércio da maconha. Com o fim de seu mandato, o projeto foi automaticamente arquivado, mas, como ele foi reeleito, já solicitou o desarquivamento, que também é automático. “Agora, o projeto deve ser debatido nas comissões, e eu pretendo, ao longo dessa legislatura, convocar audiências públicas e continuar a discussão dentro e fora do parlamento. Com uma Câmara dominada pelos conservadores, é muito importante que a sociedade civil se mobilize para garantir que esse tipo de tema seja tratado com seriedade.”
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Fora do Eixo
Manifestantes na Marcha da Maconha em Juiz de Fora, MG, em maio de 2012
O projeto de lei regulamenta, com determinadas limitações de quantidade, o cultivo caseiro para consumo pessoal e habilita a formação e o registro dos clubes de cultivadores para consumo coletivo. Ele também habilita a comercialização via mercado em condições semelhantes e com limitações similares às que existem no caso do álcool e do tabaco. Jean e sua equipe estudaram a lei uruguaia, as emendas de Colorado e Washington, nos Estados Unidos, um projeto de lei de deputadas argentinas, uma sentença da Corte Suprema do mesmo país e os modelos de alguns países europeus, como Espanha, Portugal e Holanda. Também estudaram os projetos elaborados pela rede Pense Livre, pelo Growroom e pelo pesquisador André Kiepper, que abordavam a questão de diferentes maneiras. “Tudo isso serviu como fonte. Aproveitamos muitas contribuições de todos eles, que agradecemos, mas meu projeto também tem muitos aspectos originais, que não estavam em nenhum desses lugares. São mais de 60 páginas: é um projeto bem amplo que trata da legalização da produção, da comercialização e do consumo da maconha e de seus produtos e derivados; da descriminalização do consumo de qualquer outra droga ilícita; da mudança dos critérios para definir quais drogas são lícitas ou ilícitas (abrindo a porta para a legalização de outras, que hoje são ilegais); da anistia para aqueles que estão presos pela comercialização de maconha sem ter cometido qualquer crime violento, e, em determinadas circunstâncias, de outras drogas ilícitas; das políticas de redução de danos; das políticas de assistência aos dependentes químicos que solicitarem tratamento; da proibição da internação compulsória; da criação de um conselho de políticas de drogas; do investimento em pesquisa sobre drogas e políticas públicas. Ou seja, é um projeto que trata de muitos aspectos da política de drogas para mudá-la. Porque a política atual é um fracasso e é absolutamente imoral.”
Obviamente, a aprovação do projeto não será fácil. “Os opositores a esse projeto são os mesmos que se opõem aos direitos das mulheres, dos homossexuais, das pessoas negras, do povo de santo, dos povos indígenas. São os mesmos que querem já não reduzir, mas acabar com a idade de maioridade penal, para poder encarcerar até crianças. São os que aprovaram regalias para pagar o apoio de algumas bancadas à eleição de Eduardo Cunha, como as passagens aéreas para cônjuges de parlamentares. São os deputados das bancadas da bala, da bíblia e da bola (esse é o verdadeiro BBB do Congresso!), que trabalham em defesa dos próprios interesses e das empreiteiras, dos bancos e das corporações, que pagam suas campanhas. São os reacionários e fascistas que querem uma legislação autoritária e excludente, um país sem direitos para muita gente e com mais privilégios para uma minoria. E, para esconder esses desvios morais, fazem propaganda de uma falsa moral hipócrita, que condena 'homossexuais, abortistas e maconheiros', como Eduardo Cunha falou. É a velha política que devemos enfrentar.”
Outro caso emblemático, que se arrasta desde 2012, é o do ambientalista, diretor de TV e líder espiritual Ras Geraldinho. Após várias incursões à Primeira Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, a guarda municipal de Americana, interior de São Paulo, finalmente conseguiu, em agosto de 2012, encarcerá-lo sob a acusação de tráfico de drogas após encontrar pés de maconha nos jardins da igreja. Ainda que o uso religioso seja previsto na lei de drogas, Ras foi condenado a 14 anos e 20 dias no regime fechado, pena maior que a de Fernandinho Beira-Mar, o traficante mais notório do Brasil. Sua companheira e outros frequentadores da igreja, que testemunharam em seu favor no julgamento, estão respondendo processo por associação para o tráfico.
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Além das recentes prisões de cultivadores vindo à tona em todo o país, o centro-oeste paulista vive uma cruzada particular contra os maconheiros. Em janeiro, a cidade de Marília, com pouco mais de 200 mil habitantes, registrou três aberrações jurídicas. Primeiro, duas meninas de 16 anos foram detidas por apologia ao crime de tráfico de drogas por vestirem camisetas com folhas de maconha; como eram menores de idade, foram liberadas em seguida. No dia seguinte, um rapaz, que havia sido intimado a depor na delegacia sobre um roubo, foi preso por estar usando um boné com uma folha de maconha e o código “4:20”. Ainda na mesma semana, um lojista foi detido por vender roupas estampadas com a folha no camelódromo de Marília: foram apreendidas 35 camisetas, sete calças e uma bermuda. Um mês depois houve mais um caso a 100 quilômetros dali, na cidade de Ourinhos. Dessa vez, um adolescente foi detido por dirigir uma motocicleta usando uma camiseta com a folha. Ele foi liberado, mas a camiseta e a moto foram apreendidas.
Para Jean Wyllys, “essa história de alguém ser preso por ter um boné ou uma camisa com o desenho de uma folha de maconha é absolutamente ilegal. Meu projeto não fala nisso, porque a lei atual não diz nada a respeito. Não há crime, são prisões arbitrárias e sem fundamento legal”. A situação fica ainda mais surreal se analisarmos o voto do Ministro do STF Celso de Melo na ADPF187, aquela que julgou constitucional a Marcha da Maconha afim de que não se façam mais “Marchas da Pamonha”. Em seu voto, ele é bem claro: “Defender a descriminalização de certas condutas previstas em lei como crime não é fazer apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Igualmente, não configura o crime deste artigo 287 a conduta daquele que usa camiseta com a estampa da folha da maconha, por ser inócua a caracterizar o crime e por estar abrangida na garantia constitucional da liberdade de manifestação do pensamento”.
Mas ignorar ou desconhecer leis parece ser de praxe. No entanto, quando tais prisões arbitrárias são homologadas por um delegado, um sujeito que obrigatoriamente estudou as leis para cumprir seu cargo, a coisa toda fica mais complicada. Questionei isso com o Dr. Orlando Zaccone, delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro e membro fundador da LEAP- Brasil (Agentes da Lei contra a Proibição). “O problema é que a grande maioria dos delegados não cumpre a sua missão de controlar juridicamente os atos da polícia. O que surpreende não é a condução abusiva de pessoas que usam uma camisa com o desenho de uma folha de maconha ou com dizeres a favor da legalização. Afinal, a polícia trabalha o tempo todo decidindo através do princípio da autoridade. Quem deve relaxar essas prisões ilegais é o delegado. Delegado de polícia que tem medo de soltar tem de fazer concurso para carcereiro.”
Os músicos Rafael Rasta e Cert, o ativista Cabelo e o líder espiritual Ras Geraldinho são apenas a ponta do iceberg de uma política de drogas fracassada. Ainda segundo Jean Wyllys, “as principais vítimas são os jovens pobres das periferias e das favelas, em sua grande maioria negros, que trabalham no varejo de drogas ilícitas, porque é sua única fonte de renda, e que são mortos pelas guerras de facções ou pelas polícias ou são encarcerados e têm suas vidas marcadas para sempre pelo aparelho penal”.
Não é à toa que, em sua primeira reunião de organização, ficou decidido que a faixa que vai puxar a Marcha da Maconha do Rio de Janeiro de 2015 será “Liberdade aos cultivadores e a todas as vítimas da guerra às drogas”. A marcha está marcada para 9 de maio, e para iniciar as atividades do movimento foi realizada na última segunda-feira um ato em solidariedade aos cultivadores.
Com os avanços nos EUA, a regulamentação dos múltiplos usos da maconha a nível mundial será uma realidade num futuro breve. Fica a dúvida: qual será a do Brasil? A vanguarda do atraso?
Matéria original publicada no site da Vice Brasil.