A área é demarcada com placas agressivas. Elas avisam que câmeras fotográficas e aparelhos celulares estão terminantemente proibidos na Pusher Street, ou Rua do Tráfico, um camelódromo de haxixe e maconha que se estende por duas quadras, com grande variedade de preços e origens. Ele funciona como uma feira de rua qualquer. Em vez dos gritos das ofertas, o som ambiente flutua no reggae de cada barraca.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Portal de Christiania, que desemboca na Rua do Tráfico. Reduto alternativo em Copenhague batalha para continuar existindo
O cenário, surreal para o discurso internacional anti-drogas, fica na região central de Copenhague, capital da Dinamarca, 15º colocada na edição 2012 do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) elaborada pelas Nações Unidas. O bairro que o engloba tem estatuto de “cidade livre”. Estamos na ocupação Freetown Christiania.
Instalada em 1971, Christiania comemora seus 42 anos de resistência a um quilômetro e meio do centro turístico da capital dinamarquesa. São 340 mil m² de comércio, casas e mata à beira de um tranquilo canal que desemboca no Mar Báltico. A ocupação está encravada em Christianshavn, uma das zonas revitalizadas e mais valorizadas de Copenhague, com marinas repletas de lanchas e veleiros.
“A área antes era militar, ocupada pela Marinha dinamarquesa. No início da década de 1970, o governo decidiu que ela estava muito próxima da cidade e a abandonou. Pouco depois tomamos o terreno”, conta um dos primeiros moradores da área, que hoje toca o Den Grønne Genbrugshal, marcenaria que recolhe e recicla móveis usados. “Hoje já conseguimos ter uma economia totalmente sustentável”, afirma.
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Liberdade na bicicleta e nas paredes, Christiania é reduto de artistas e estilo de vida alternativo na capital dinamarquesa
A principal fonte de renda de Christiania e de seus cerca de mil moradores é o turismo e, claro, o comércio de haxixe e maconha. Sua venda e consumo, proibidos em toda a Dinamarca, é livre pela lei de Christiania. Mesmo assim, batidas policiais são constantes, segundo os vendedores. “Recolhemos os produtos assim que sabemos de alguma coisa”, disse um deles, que não quis se identificar. “Se você for pego com um baseado tem de pagar de imediato três mil coroas (cerca de R$ 1,2 mil) ou vai preso.”
O ambiente na Rua do Tráfico, apesar de descontraído, carrega um quê de tensão. Fotografar e filmar é proibido, já que as imagens podem servir de prova para a prisão dos traficantes. E, ainda hoje, a “cidade livre” permanece alerta para polêmicas e uma eventual perda de território. Sua existência continua à mercê de constantes batalhas judiciais com o governo dinamarquês.
Leis próprias
A famosa tábua de leis de Christiania, que pode ser encontrada em toda parte e é vendida como cartão-postal, proíbe drogas pesadas como cocaína e heroína. A área é livre de carros e motos. Curiosamente, não se pode flanar usando distintivos de bandas de rock desde uma rusga na década de 1980. Armas, fogos de artifício e qualquer uso de violência também estão banidos. Quem descumprir as regras é expulso da ocupação em definitivo.
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Cartaz com as leis de Christiania, ao lado de uma foto de Ghandi. Fotos são proibidas dentro da ocupação dinamarquesa
A tábua foi discutida e adotada pela Fællesmødet, ou Reunião Conjunta, nome da principal assembleia de Christiania, que preza pela democracia participativa consensual. Isto é, as decisões do grupo de moradores, entre elas o orçamento anual, as negociações com o governo dinamarquês e as respostas à ação policial, são tomadas com base na boa argumentação. Não há voto.
Além da assembleia principal, há também grupos específicos para administrar a parte financeira da ocupação, que gerencia todas as contas de água e luz e rejeita os impostos sobre propriedade. Em compensação, seus moradores, que pagam taxas mensais à assembleia, gostam de exaltar a reforma de prédios históricos, a criação de creches gratuitas e de centro culturais que puseram Copenhague no mapa do turismo alternativo.
“Christiania é uma das grandes atrações turísticas de Copenhague, uma ‘marca’ reconhecida no exterior que simboliza o estilo de vida progressista e liberal dos dinamarqueses”, diz o texto do guia “oficial” da ocupação, ao custo de 20 coroas (R$ 8). Ele apresenta mapas para pontos de interesse, como a sempre cheia Sunshine Bakery (Padaria Raio de Sol), o bar Woodstock e o restaurante vegano Morgenstedet.
Gritos de independência
Desde sua fundação, em 1971, os 340 mil m² de Christiania estão em litígio. São dezenas de batalhas judiciais na Suprema Corte da Dinamarca e uma coleção de derrotas. A ocupação foi fechada diversas vezes, seguidas de manifestações populares e retomadas de território. Somente agora, depois de mais um imbróglio judicial, uma solução parece ter sido alcançada: os moradores decidiram criar um fundo para comprar a área.
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As famosas bicicletas de Christiania, com caçamba dianteira. Desde sua fundação, em 1971, os 340 mil m² de estão em litígio
Segundo estimativa do governo, boa parte da área de Freetown Christiania vale 76 milhões de coroas dinamarquesas (cerca de R$ 30 milhões). De acordo com a assembleia, a solução está longe do ideal, mas acabaria com o litígio e eliminaria a possibilidade de loteamento e venda da área para particulares.
Até o momento, a ocupação conseguiu levantar 10 milhões de coroas (ou quase R$ 4 milhões) para pagar a fatura com a venda de “ações” para o projeto. Quem contribui recebe um título que nada tem a ver com o mercado financeiro. “As ações de Christiania não são ações da bolsa de valores. Elas promovem comunidade, cooperação e autonomia em contraste com a especulação financeira que está causando grandes danos a comunidades em todo o mundo”, explica o grupo Christiania Folkeaktie, que administra o processo.
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