Para pensar sobre a existência ou não do militar legalista, tomemos a mão de mulheres que vêm há décadas desnudando as histórias de ninar dessa nação, contando de um país que não está no retrato. Em uma análise de todas as constituições republicanas brasileiras, Suzeley Kalil chama a atenção para a permanência, nas leis, de mecanismos de tutela militar sobre a política brasileira. Por meio da Garantia da Lei e da Ordem, as únicas instituições permanentes da Constituição – em que nem mesmo o Estado é permanente –, se mantêm como reserva interventora da política. Assim, goste-se ou não, a participação militar na política é, em alguma medida, legal, e o militar brasileiro é, sim, extremamente legalista, apegado à normas e leis, um bacharel armado, como exemplificam muitos momentos da história do Brasil.
Os autores do belíssimo samba “História pra ninar gente grande”, feito para a Estação Primeira de Mangueira, chamam a atenção para o avesso do mesmo lugar, a história que a história não conta. E os mesmos soldados que se subordinam à lei insurgem-se para rompê-la, com o cuidado de criar novas leis. Durante a ditadura militar, foram 17 Atos Institucionais reorganizando a legalidade conforme as necessidades do momento. Durante o governo Bolsonaro, dezenas de decretos e portarias, oriundas do Ministério da Defesa, cumpriram o mesmo papel. E a maioria deles não foi revogada.
Conhece-se um bom bordado pela beleza do seu lado invertido, e o avesso da memória militar brasileira é feio que só. Não se trata de tomar o todo pela parte, mas a história do Brasil é repleta de ocasiões em que os legalistas pela manhã tornaram-se legisladores pela tarde, arvorando-se o direito de, como verdadeiros patriotas que são, interpretarem e, se necessário, recriarem a legalidade à sua imagem e semelhança.
No dia 8 de janeiro de 2023, nem todo o Alto Comando do Exército brasileiro pensava da mesma maneira sobre como conduzir os próximos tempos. Existiram sim militares contrários à intentona golpista. Mas isso não significa que existam militares legalistas, ao menos na concepção civil do termo, mas sim que existem militares cuja lealdade reside na própria Instituição militar, mais do que no Partido Militar. Instituição e Partido dificilmente se confrontam, pois todos pertencem à grande família armada, e maiorias extremistas recuaram para evitar a quebra da coesão interna diante da ausência de apoio internacional a uma quartelada.
Só que as Forças Armadas não agem num vazio, mas em um tempo e espaço compartilhado com as elites civis. Através da sua escrevivência, a mineira Conceição Evaristo lança luz sobre “Canções de Ninar Meninos (soldados) Grandes”. Seu personagem Fio Jasmim (filho Jasmim, na linguagem oral do Brasil profundo) é um homem autocentrado e mimado, que não olha para o lado e não mede as consequências dos inúmeros filhos e mulheres que deixou em muitas cidades. É viril, macho, conquistador, potente, tantas características valorizadas nos quartéis, e que no livro vão se desmoronando.
A maioria das mulheres que Fio Jasmim enganou não sabiam ter entrado num jogo, quais as suas regras e nem como vencer. A esquerda padece do mesmo mal, com um enorme medo de olhar para dentro da Caixa (Forças Armadas) de Pandora. Mesmo organizações que propõem mudanças estruturais para o Brasil tratam, quando muito, a questão militar como um tema conjuntural e de curto prazo. Para outras, assim como as mulheres de Fio, o tema é marcado pelo desejo. Na ausência de força social organizada, setores da esquerda seguem em busca de um seguro armado contra as turbulências provocadas ou toleradas pela própria força armada, um “militar para chamar de seu”. Outras dessas mulheres, tais quais as elites econômicas brasileiras, fingem não saber que, frutos indesejados (?) da caserna fora de controle, em diferentes lugares do mundo, foram/são o fascismo, a violência, o militarismo.
Enganadas, desejosas, felizes, traídas; Fio consome as mulheres com voracidade seguida de indiferença. Conceição Evaristo opta pela redenção de Fio em seu livro, cujo comportamento é justificado pela masculinidade afrocentrada por muitas vezes violada. Fio goza dos benefícios do patriarcado, cujo preço, um dia, terá que pagar. Aqui os paralelos não são mais possíveis, pois o argumento da orfandade da caserna diante do desinteresse de civis que não gostam de militares, ou não tomam como importantes as causas que lhes interessam, não se sustenta na atualidade. O mesmo vale para o preço a pagar por enredar tantos com canções de ninar. Será?
Resta lembrar que a caserna escolhe as legalidades que pretende respeitar. Embora as cartas constitucionais brasileiras façam constantes referências à função social da terra, e mesmo com a promessa do general-ditador Médici de entregar a terra sem homens (a Amazônia), para os homens sem terra, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra é visto como uma força de desestabilização da ordem/segurança, impedidora do progresso/desenvolvimento, pelas lentes dos quartéis.
O mês de abril abre caminho para os 40 anos desta organização política que, fundada por quem foi de aço nos anos de chumbo, e embalada por Dandaras, Marias, Mahins, Marielles, Suzes, Bethânias e Conceições, segue grávida de rebeldia. Não esperem do MST canções pra ninar meninos grandes.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.