Na última quarta-feira (24), o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), em Belo Horizonte, reconheceu que o desastre da mineradora Samarco (joint venture da Vale SA e BHP Billiton), em novembro de 2015, no Rio Doce, produziu danos na área costeira do Espírito Santo. A decisão afirma que não há necessidade de realização de mais provas técnicas para comprovar tais danos. Os moradores de cidades entre Conceição da Barra e Serra, no Espírito Santo, passam a ser incluídos na lista de reparação como possíveis atingidos pela lama de rejeitos de minério oriunda da barragem da Samarco em Mariana (MG).
Parece surpreendente que tal reconhecimento só esteja ocorrendo agora, pois o Brasil inteiro acompanhou pelos noticiários, dia após dia, entre 05 e 21 de novembro de 2015, a lama percorrendo todo o vale do Rio Doce até chegar ao mar. As imagens da lama descendo o rio, deixando cidades inteiras sem água potável, e, ao final, se espalhando pelo litoral, inclusive causando temor de que chegasse ao Arquipélago dos Abrolhos… Tudo foi visto, em tempo real, por uma nação perplexa. Mas a decisão só saiu em abril de 2024, quase nove anos após o desastre. Esse tem sido o ritmo das decisões em todo o processo de reparação do maior desastre ambiental da história brasileira.
A dinâmica da reparação é uma teia quase incompreensível, até para os que acompanham de perto o processo, e inclui ações judiciais individuais e coletivas (há informações de que já passam de 90 mil, incluindo cíveis e penais); negociações e processos extrajudiciais; um grande acordo de ajustamento de conduta (TAC), envolvendo instâncias administrativas públicas (CIF, Câmaras Técnicas, etc.) e até mesmo a criação de uma fundação privada (Fundação Renova) responsável pelos programas de reparação. O Estado brasileiro, através dos executivos e das instituições de justiça, tanto em escala estadual quanto federal, produziu esta teia e, ao mesmo tempo, se emaranhou nela.
Na recente decisão, pode-se verificar a perversa trama. As áreas do litoral capixaba foram consideradas impactadas já em 2017 pelo Comitê Interfederativo (CIF), composto por representantes da União, dos governos de Minas Gerais e Espírito Santo e de instituições de Justiça. Na época, o órgão deliberou que a Renova iniciasse, em até 30 dias, o cadastro dos atingidos nesses locais. A Fundação não cumpriu essa determinação, o que gerou a ação do Ministério Público que agora foi julgada. A ação cita infindáveis dados técnicos sobre a biodiversidade aquática, laudos que atestam a insegurança alimentar provocada na população pela contaminação do pescado com metais pesados, e até mesmo um estudo hidrossedimentológico, que prevê que o rejeito de minério se depositará na região costeira do Espírito Santo até o ano de 2060. A guerra de laudos, peritos e especialistas, assim como as idas e vindas entre ações judiciais e negociação extrajudicial, têm servido para procrastinar a efetiva reparação.
Enquanto isso, os atingidos seguem convivendo com a destruição de suas vidas e modos de vida. Milhares de pessoas ainda sobrevivem do auxílio emergencial da empresa; as comunidades inteiramente destruídas de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira não foram reassentadas (as casas ainda estão em fase de construção); milhões de pessoas em mais de 40 cidades nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo tiveram a renda diminuída ou subtraída pelos danos causados à agricultura, pesca ou turismo. E a cada novo nó da teia de procrastinação, os atingidos precisam apresentar documentos, cadastros, estudos, dados para comprovar o que é notório desde 2015. O tempo de trabalho e descanso perdido em negociações, protestos e reuniões não é contabilizado para fins de indenização. As pessoas adoecem e as famílias se desfazem. Muita gente já morreu e não viu a reparação chegar. O adoecimento mental que a infinita presença do desastre causou não é reconhecido como dano provocado pela mineradora.
Quanto mais o tempo passa, mais difíceis são de comprovar tecnicamente os “nexos causais”. Ainda assim, seguem sendo produzidos laudos e estudos que atestam o óbvio, mas a empresa recorre para negar os direitos. Os atingidos afirmam que a Samarco já gastou muito mais em advogados para evitar a reparação do que gastaria para reparar se aceitasse o que os atingidos e o poder público demandam. A lógica econômica simples não explica.
Não é pelo cálculo financeiro que as empresas não fazem a reparação. Aceitar a centralidade da vítima e a ampla abrangência da responsabilidade da Samarco neste caso significaria criar um precedente para as ações de toda a indústria da mineração ao redor do mundo no futuro. Como Vale e BHP são duas das maiores mineradoras do planeta, elas não vão assumir nunca a totalidade de sua responsabilidade na destruição do rio Doce e seus habitantes – humanos e não humanos – para que isso não se torne metodologia ou norma internacional de reparação. Elas sabem que vão reincidir. A Vale já reincidiu no Brasil, em 2019, no desastre da mina Córrego do Feijão.
Os mais de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração que a Samarco lançou no Rio Doce, em suas margens e na região costeira, mataram 19 pessoas em 5 de novembro de 2015. Milhares de outras pessoas adoeceram nos meses e anos seguintes e, em alguns casos, também morreram. Milhões de animais foram mortos no rio, em suas margens e no mar. A população de mais de 40 cidades nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo teve sua economia afetada, levando ao empobrecimento e à deterioração das condições de vida. Em algumas comunidades, além da atividade econômica, houve a perda de casas, espaços culturais, de memória e religiosos que não foram reconstruídos. A vida espiritual e material dos povos Krenak, Tupiniquim e Guarani na bacia do Rio Doce foi mais uma vez destroçada. Centenas de milhares de quilômetros de mata atlântica foram destruídos. Enquanto todas estas vidas acabaram ou estão em suspenso, Samarco, Vale e BHP seguem com sua atividade e aumentando lucros.
O maior desastre ambiental do Brasil continua acontecendo, todos os dias, por quase nove anos.
(*) Flávia Braga Vieira é doutora em Planejamento Urbano e Regional, professora da UFRRJ e coordenadora do Programa de Extensão Universitária Assessoria Técnica e Educacional Meio Ambiente e Barragens. É também autora de “Dos proletários unidos à globalização da esperança: um estudo sobre internacionalismos e a Via Campesina” (São Paulo: Alameda, 2011.)