Há 76 anos, na madrugada de 22 para 23 de maio de 1948, a aldeia palestina de Tantura servia de palco para uma das atrocidades mais hediondas ocorridas no contexto da Nakba. A fim de assegurar o domínio sobre a aldeia, aterrorizar e expulsar a população nativa, paramilitares israelenses estupraram, torturaram e assassinaram mais de 200 civis durante o chamado Massacre de Tantura.
O massacre foi um dos muitos episódios brutais desencadeados pelo “Plano Dalet” — uma estratégia militar que visava assegurar a instalação do Estado de Israel e garantir o controle sobre os territórios palestinos. O plano foi elaborado ainda em 1947, antes da criação do Estado de Israel, por iniciativa de David Ben-Gurion, líder da Agência Judaica e futuro primeiro-ministro de Israel. Embora seja formalmente tratado pelas lideranças sionistas como um “plano de contingência” para proteger as fronteiras israelenses e debelar a eventual resistência árabe à criação do Estado de Israel, o plano consistia majoritariamente em uma série de ofensivas e ataques às cidades localizadas nos territórios atribuídos à Palestina pela partilha da ONU.
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Conforme relatado pelo historiador israelense Ilan Pappe, o “Plano Dalet” previa a “expulsão de forma sistemática e total” do povo palestino de sua Pátria. Era, portanto, uma das pedras angulares da Nakba (“A Catástrofe”) — a operação de limpeza étnica conduzida por Israel, que resultou na expulsão de quase 800 mil palestinos de sua terra natal. Os grupos paramilitares e milícias sionistas foram responsáveis por incendiar e destruir mais de 600 vilarejos e assassinaram milhares de civis palestinos em uma longa sequência de massacres e chacinas.
A concepção do “Plano Dalet” ficou a cargo da Haganah, a principal organização paramilitar israelense, que já conduzia massacres e atentados terroristas contra a população palestina desde a década de 1920. As operações foram executadas em conjunto com outras milícias, como o Irgun e o Lehi — organizações que seriam fundidas à Haganah para criar as Forças Armadas de Israel. As milícias eram divididas em brigadas e recebiam uma lista das aldeias que deveriam tomar ou destruir.
Na segunda semana de maio de 1948, as autoridades sionistas incumbiram Haganah a realizar a “limpeza” das aldeias que formavam um enclave palestino na área costeira entre Haifa e Tel-Aviv, no território que a ONU havia atribuído a Israel. Entre as localidades a serem atacadas, estava o vilarejo de Tantura.
Situada ao norte da Palestina, junto ao litoral mediterrâneo, nos arredores do Monte Carmelo, Tantura era uma aldeia pacata de 1.500 habitantes, conhecida por sua beleza natural e por abrigar as ruínas arqueológicas de Tel Dor — uma antiga cidade cananeia referenciada na Bíblia, no Livro de Josué. Abrigava também um “Saqam” (santuário muçulmano) dedicado a Abdul-Rahman Al-Sa’di. Seus moradores viviam da pesca e do cultivo de cereais e frutas cítricas. A cidade não abrigava nenhum posto militar nem células da resistência armada palestina.
A Brigada Alexandroni, uma unidade militar subordinada à Haganah, foi incumbida da tarefa de tomar a aldeia de Tantura. A operação teve início na madrugada de 23 de maio de 1948, apenas uma semana após David Ben-Gurion proclamar a fundação do Estado de Israel. Após um violento ataque com tiros de metralhadora, a infantaria avançou vasculhando casa por casa. Alguns aldeões tentaram resistir, mas em poucas horas a aldeia estava dominada. Os moradores se renderam, mas isso não impediu que fossem submetidos ao estupro, à tortura e à violência bestial dos invasores.
Os homens foram separados das mulheres e levados a um paredão junto à orla. Nesse local, o chefe da brigada, Shimshon Mashvitz, ordenou que fossem sumariamente executados, com tiros na cabeça. Ao menos 85 homens, com idades entre 13 e 50 anos, foram assassinados dessa forma.
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Moradores de Tantura fugindo do vilarejo, maio de 1948
Estima-se que mais de 200 pessoas morreram no massacre. Após a chacina, os corpos das vítimas foram enterrados em uma vala comum. As mulheres e crianças que sobreviveram ao massacre foram enviados para a aldeia vizinha de Fureidis. O vilarejo de Tantura foi destruído e inteiramente remodelado para abrigar as novas instalações dos colonos israelenses. No território da antiga cidade, hoje se encontram o kibutz de Nahsholim, o moshav de Dor e um resort muito apreciado pelos turistas na alta temporada. A vala onde se encontram os restos mortais das vítimas do massacre — nunca escavados — foi concretada e transformada em um estacionamento, usado pelos banhistas israelenses que visitam as praias da cidade.
Durante décadas, os palestinos que sobreviveram à chacina denunciaram o massacre, mas sempre foram desacreditados pelas autoridades israelenses, sob a alegação de que as denúncias eram difamação de cunho antissemita. A proibição de divulgar documentos sobre as operações militares conduzidas por Israel durante o período da Nakba dificultou enormemente a pesquisa histórica. Mas a partir da década de 1980, historiadores, jornalistas e acadêmicos começaram a se mobilizar para reunir evidências e coletar relatos de testemunhas e sobreviventes da chacina.
Durante a produção de uma tese de mestrado, um estudante da Universidade de Haifa chamado Theodore Katz conseguiu reunir mais de 140 horas de entrevistas gravadas com 135 testemunhas do Massacre de Tantura, incluindo relatos de judeus e de palestinos.
A pesquisa de Katz incentivou o jornalista Amir Gilat a publicar uma matéria sobre o massacre para o jornal Maariv. Uma associação de veteranos da Brigada Alexandroni reagiu com indignação e deu início a um
pesado assédio jurídico contra o autor do estudo. Em paralelo, parte da imprensa israelense moveu uma campanha de desqualificação da pesquisa. Pressionada, a Universidade de Haifa puniu Katz, instalando uma comissão que decidiu invalidar sua tese e seu título de mestre. O renomado historiador Ilan Pappe saiu em defesa de Katz.
Pappe referendou integralmente o conteúdo da pesquisa e desafiou os veteranos a processá-lo, para que pudesse apresentar em juízo as provas e evidências de que o massacre existiu. Além de defender Katz, o historiador conseguiu amealhar novas evidências documentais sobre a veracidade do massacre. A intervenção dele foi crucial para divulgar o massacre e inspirar novos estudos e pesquisas sobre a limpeza étnica
promovida pelo governo israelense durante o período da Nakba.
Em 2022, o cineasta Alon Schwarz lançou o documentário Tantura, trazendo em primeira mão diversos depoimentos de veteranos israelenses que atuaram na ofensiva militar contra os palestinos em Tantura. Na obra, os ex-combatentes admitem abertamente que participaram parte do massacre e detalham as atrocidades cometidas.
A ONG palestina Adalah, em 2023, empreendeu uma investigação independente de arquitetura forense que encontrou vestígios da existência de restos mortais sob o estacionamento do balneário. A autorização governamental para a exumação dos corpos, entretanto, jamais foi concedida.