“Foi, em verdade, uma revolução dos elementos da natureza, associados numa empreitada sinistra de destruição e angústia, contra a inteligência e os recursos humanos, impotentes e impassíveis ante a fúria das águas – fonte soberba de vida – transformadas em motivo de desalento, de desespero e de dor”. Essa é a descrição que consta no relatório oficial da prefeitura de Rio Grande sobre a maior catástrofe climática que afligira o povo gaúcho até então. A enchente de 1941 havia assolado as cidades localizadas às margens do Guaíba e da Lagoa dos Patos, causando uma devastação sem precedentes até então. A capital gaúcha, Porto Alegre, foi o município mais afetado. Um em cada quatro moradores da cidade perdeu sua casa.
A cheia de 1941 impressionou pela potência, mas não pela novidade. As condições topográficas, o clima e as peculiaridades da circulação atmosférica sempre favoreceram a ocorrência de enchentes no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, a situação é agravada pelas condições geográficas. A capital gaúcha localiza-se junto à bacia do Guaíba, que serve de escoadouro para os cursos d’água que banham 30% da área geográfica do estado. A cidade é cortada por 27 arroios e tem pelo menos um terço de seu território com altitude média inferior a três metros – isso é, quase no mesmo nível dos rios. A região mais adensada da cidade, o seu centro, está localizada junto ao ponto de maior represamento das águas do Guaíba.
Os aspectos geográficos, entretanto, não explicam o nível de destruição causado pelas inundações no estado – embora seja esse o pretexto mais comumente utilizado pelos gestores públicos que buscam fugir da responsabilidade e evitar acusações de imperícia e negligência. As ações antrópicas são os grandes catalisadores do potencial destrutivo das cheias. O desmatamento intensivo, a ocupação dos vales, a impermeabilização do solo e o crescimento urbano desordenado foram essenciais para transformar as enchentes em problemas crônicos.
Em Porto Alegre, o registro das cheias é quase tão antigo quanto a própria cidade. A primeira inundação de que se tem notícia na capital gaúcha data de 1795 – apenas 23 anos após a fundação do município. À medida em a cidade se expandia, as inundações foram se tornando mais frequentes e mais violentas. Três grandes cheias foram registradas no século XIX (1824, 1833 e 1873) e outras cinco ocorreram apenas nas primeiras décadas do século XX (1914, 1918, 1926, 1928 e 1936). Mas nenhuma delas se equipararia à grande enchente de 1941, um marco traumático na história de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, gravado até hoje no imaginário da população gaúcha.
Entre abril e maio de 1941, o Rio Grande do Sul foi atingido por chuvas torrenciais que se estenderam por mais de quatro semanas. A precipitação provavelmente foi influenciada pelo El Niño, embora o fenômeno ainda não tivesse sido identificado. As chuvas elevaram o nível das águas dos rios Taquari, Caí, Gravataí, Jacuí e Sinos, que desembocam no Guaíba. O índice pluviométrico ultrapassou 1.000 milímetros em algumas regiões do Rio Grande do Sul e chegou a 791 milímetros em Porto Alegre. Para agravar a situação, o forte vento vindo da Lagoa dos Patos reduziu a velocidade de escoamento, represando a água no Guaíba.
Os bairros baixos de Porto Alegre já estavam alagados desde o fim de abril, mas a catástrofe maior ocorreria no dia 8 de maio, quando o Guaíba atingiu o maior nível registrado até então: 4,76 metros. Toda a área central da cidade ficou submersa. O nível da água chegou a 1,50 metro na Praça da Alfândega, 1,70 metro no Mercado Público e a 2 metros no Cais do Porto. A Usina do Gasômetro foi inundada, suspendendo o fornecimento de energia elétrica. Também houve danos ao sistema de abastecimento de água potável. Porto Alegre ficou ilhada. As telecomunicações foram interrompidas e a única forma de transporte possível era por meio de barcos e canoas.
A cidade ficou submersa por 22 dias. O saldo da enchente foi devastador. Não há um saldo oficial de mortos, mas é certo que dezenas morreram. Cerca de 70 mil pessoas – um quarto da população da cidade – perderam suas casas. Mais 10 mil edifícios foram danificados. A enchente forçou o fechamento de 600 comércios e de mais de um terço das fábricas. Os danos não se limitaram à capital. Todos os municípios situados às margens do Guaíba e da Lagoa dos Patos, em toda a extensão entre Porto Alegre e Rio Grande, sofreram estragos. Outras cidades como Caxias do Sul, Santa Maria, Soledade e Passo Fundo também tiveram de lidar com as cheias.
Reagindo à catástrofe, a população gaúcha se esforçou em criar uma rede de solidariedade, voluntariando-se a resgatar pessoas ilhadas e buscando assegurar abrigo, alimentação, água e remédio para as vítimas. A ação do poder público, entretanto, foi fundamental para evitar que a enchente se convertesse em uma tragédia de proporções ainda maiores. A fim de desestimular a ação de aproveitadores, o governo decretou o congelamento dos preços dos alimentos e dos itens básicos e determinou a prisão de comerciantes que descumprissem a ordem. Escolas, clubes, cinemas, igrejas, sindicatos e prédios públicos foram transformados em abrigos, que acolheram dezenas de milhares de pessoas. Diversos centros de distribuição de alimentos e água potável foram criados. Um Hospital Central de Atendimento foi inaugurado às pressas para atender os feridos e enfermos. O governo estadual conduziu uma bem sucedida campanha emergencial de vacinação, imunizando as vítimas da enchente contra tifo, varíola e difteria, impedindo a eclosão de surtos e epidemias sanitárias.
Coube também ao poder público papel essencial na reconstrução do estado após a enchente. Os governos locais instituíram uma série de programas tocados pela Comissão de Auxílio aos Flagelados e pela Comissão Consultiva de Restauração Econômica. Em paralelo à reconstrução, a sociedade pressionou os gestores públicos a elaborarem projetos para impedir a repetição de uma catástrofe de tal magnitude no futuro. As obras de canalização do Arroio Dilúvio foram aceleradas e foram idealizados os primeiros projetos de uma barreira para proteger a capital gaúcha de enchentes.
Na década de 1970, iniciou-se a construção do Sistema de Proteção Contra Cheias. O sistema é composto por 68 quilômetros de diques, 14 comportas de vedação, 19 casas de bomba e redes de drenagem. Também compreende o Muro da Mauá – uma estrutura com 2,6 quilômetros de extensão, 3 metros de altura e 3 metros de profundidade, localizado junto ao Cais Mauá, no centro histórico de Porto Alegre, que serve como uma barreira física contra as águas.
A princípio, o sistema provou-se efetivo. Mesmo enfrentando um aumento de 46% na ocupação urbana desde a década de 1970, a capital gaúcha conseguiu reduzir os danos das enchentes nas quatro décadas seguintes. Os fenômenos ocorridos nos últimos anos, entretanto, deixam evidente que os desafios impostos pelas mudanças climáticas exigirão esforços bem maiores de agora em diante. O Rio Grande do Sul tem sido palco recorrente de eventos climáticos extremos – que vão da ocorrência de ciclones e chuvas violentas a secas cada vez mais severas. Os gaúchos enfrentaram duas graves enchentes em um intervalo de dois meses em 2023. E apenas seis meses depois, em maio de 2024, uma enchente devastadora desbancou a trágica cheia de 1941 para se tornar a mais grave catástrofe climática da história do estado. A enchente de 2024 já afetou mais 80% dos municípios gaúchos e atingiu 2,1 milhões de pessoas. Mais de 140 pessoas morreram e outras 530 mil estão desalojadas.
Os desafios políticos também são consideravelmente maiores hoje. Se nas enchentes ocorridas em meados do século XX predominou a concepção do papel institucional do Estado como indutor das mudanças e agente central dos esforços de reconstrução, na atual tragédia há um esforço evidente de desmoralizar o papel do poder público e induzir a percepção de que a salvação vem da iniciativa privada, da caridade corporativa e da vontade dos indivíduos. O mais grave é que essa estratégia mistificadora conta com a colaboração de alguns agentes públicos.
A primazia dos interesses privados, encampada de forma plena pela governança neoliberal do estado, é certamente um dos fatores que tem agravado o potencial destrutivo dos fenômenos climáticos no Rio Grande do Sul. O governador Eduardo Leite, obcecado em vender ao eleitorado a ideia de que seguir o receituário neoliberal e o mote do “Estado mínimo” é promover a modernidade e a eficiência, realizou um verdadeiro desmonte da legislação ambiental do Rio Grande do Sul, cortando e flexibilizando quase 500 pontos do Código Ambiental do estado. A mutilação do código abriu brechas para ampliar a exploração econômica em áreas de preservação e afrouxar a fiscalização sobre atividades com danosas ao meio ambiente. Atendendo aos interesses do agronegócio, Leite também sancionou uma lei que autoriza a construção de barragens e obras de irrigação em Áreas de Preservação Permanente. O governador gaúcho fez sucessivos cortes no orçamento da Defesa Civil (que despencou de R$ 1 milhão em 2022 para R$ 50 mil em 2024) e reduziu a verba destinada para a gestão de projetos e respostas a desastres naturais (de R$ 6,4 milhões em 2022 para R$ 5 milhões em 2023). Leite ignorou igualmente um relatório produzido pala Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul versando sobre medidas de prevenção às catástrofes climáticas.
A prefeitura de Porto Alegre seguiu o mesmo caminho do austericídio. Em 2023, mesmo diante das ocorrências cada vez mais frequentes dos fenômenos climáticos extremos, o prefeito Sebastião Melo optou por não investir um único centavo em programas de prevenção contra enchentes. O orçamento da área, que era de R$ 1,7 milhão em 2021, foi reduzido a zero em 2023. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), que coordena esforços contra enchentes, também está sendo sucateado. A autarquia sofreu a retenção de quase R$ 400 milhões em verbas e viu seu quadro de servidores ser reduzido em 47% desde 2013.
Em Porto Alegre, o Sistema de Proteção Contra Cheias não vê obras de manutenção há mais de uma década. E a negligência cobrou um preço alto. A vedação do sistema estava cheia de lacunas. Em alguns locais, havia buracos com mais de 10 centímetros entre as portas e o muro de contenção. Os motores e as bombas falharam e uma das comportas colapsou. O sistema, projetado para barrar o Guaíba com nível de até 6 metros, entrou em colapso quando a água ultrapassou 5 metros. O estrago só não foi pior porque a ideia do governador Eduardo Leite de derrubar o Muro da Mauá para modernizar o cais e incentivar os negócios privados na região não foi levado adiante.
É o Estado, sobretudo na figura do governo federal, quem arcará com a responsabilidade efetiva de reconstruir e superar a tragédia. O governo Lula disponibilizou 60 bilhões de reais em ações emergenciais, anunciou a criação de um auxílio financeiro para as famílias atingidas e de programas de reconstrução e doação de moradias populares. O discurso de glorificação da iniciativa privada, como de costume, some nessas horas. E as lições que deveriam ter sido aprendidas desde 1941 seguem sendo ofuscadas pela instrumentalização ideológica da tragédia, pela difusão de notícias falsas e pelo exibicionismo da caridade interessada de influenciadores e subcelebridades.