No programa 20MINUTOS INTERNACIONAL desta quinta-feira (26/08), o jornalista Breno Altman entrevistou o cientista político Jonis Alasow, coordenador da organização Pan Africa Today.
Segundo ele, mesmo quase 30 anos depois do fim oficial do apartheid na África do Sul, o regime ainda segue vivo: “A única coisa do apartheid que realmente acabou foi o sistema legal. Mas em termos reais ainda vemos escolas apenas com alunos brancos, hospitais só para os mais ricos. […] A classe trabalhadora segue sendo explorada, então, social e estruturalmente, o apartheid permanece, sua fundação e seus pilares não foram tocados”.
Alasow destacou que, apesar das conquistas que vieram com o fim do regime, como por exemplo o direito de voto e circulação, o dinheiro e o neoliberalismo continuam a controlar o país. Como resultado, ainda existe muita desigualdade, desemprego e exploração no país.
“Nossa libertação não foi concluída. A visão de uma África que pertence a todos está longe e o Congresso Nacional Africano [ANC, sigla em inglês] nos guiou para um país neoliberal que segue os preceitos do apartheid”, afirmou.
O cientista político explicou que o ANC não nasceu como um grupo de liberação do povo negro, era uma organização explicitamente anticomunista, mas que, nos anos 1950, o partido percebeu a necessidade de radicalizar seu programa e incorporar algumas demandas da classe trabalhadora. Por isso, a legenda chegou até a fazer alianças com o Partido Comunista, transformando-se em uma grande coalizão, “porque entre os comunistas houve o entendimento que para lutar pela revolução era importante apoiar um partido nacionalista e foi graças a esse apoio que o ANC permitiu o avanço de algumas pautas”.
“Mas é importante dizer que o processo de conseguir a liberdade do apartheid não foi uma vitória do ANC, mas do povo africano que lutou e contou com a ajuda da classe trabalhadora do mundo todo”, reforçou.
Atualmente, de acordo com o ativista, existem duas facções dentro do ANC, uma liderada pelo ex-presidente Jacob Zuma e outra leal ao atual presidente, Cyril Ramaphosa, e ambas buscam apenas seu próprio enriquecimento, “mas a segunda busca retornar a uma economia liberal mais pura que existia antes de 1994”. De qualquer forma, ele reiterou que os interesses e vozes das massas não estão representados.
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Coordenador da organização Pan Africa Today vê com otimismo o futuro da África do Sul
“30 anos depois do apartheid, o ANC está promovendo as mesmas políticas neoliberais e sua coalizão permaneceu intacta, infelizmente. O Cosatu [Congresso de Sindicatos Sul Africanos] e o Partido Comunista se deitaram ao lado do Estado burguês, aceitaram cargos e Ministérios que os deixaram impotentes. Não estão mais usando seu lugar à mesa para lutar pelos interesses do povo”, ressaltou.
Onda de protestos
Alasow analisou a onda de protestos que assolou a África do Sul em julho, deixando mais de 200 mortos e tendo como estopim a prisão do ex-presidente Zuma. Para entender o que aconteceu no país, ele apontou para o contexto em que se deram as manifestações: taxas altíssimas de desemprego, de 74% entre os jovens e mais de 50% entre negros; insegurança pela pandemia e fome.
“Ramaphosa aprovou uma política de salário mínimo que não cobre nem a cesta básica. Então a prisão de Zuma não foi o principal, só serviu de faísca para despertar um sentimento em milhares de pessoas que estavam com fome, sentindo-se inseguras e que se aproveitaram do caos para roubar comida, porque não teriam acesso a ela de outra forma. Foi uma rebelião por comida”, defendeu.
Ele ainda rejeitou a participação ou influência internacional nos protestos que tomaram conta do país: “Eu gostaria de saber qual governo estrangeiro, que já conseguiu assegurar que a África do Sul siga o caminho do neoliberalismo, ia querer instigar algo?”.
O ativista relembrou que a situação é consequência da perspectiva neoliberal que existiu no ANC quase desde sua criação e que realizou concessões excessivas ao negociar o fim do apartheid, sem acabar com os elementos que hoje permitem que existam pessoas passando fome.
“É triste que o que precisou para a população perceber isso foi a polícia disparar e matar mais de 30 mineradores que estavam em greve, tal é o nível de desmobilização que o ANC promoveu no país. Vivemos algo que não imaginávamos que ia voltar a se repetir e aí percebemos que este não é um governo para o povo”, contou.
Novos desafios
Depois de 2012, Alasow disse que a população começou a se organizar e demonstrar seu descontentamento com o ANC, por exemplo com sindicatos deixando o Cosatu por discordar da coalizão. Por isso, ele vê com otimismo o futuro da África do Sul.
“Está chegando o momento da classe trabalhadora contestar o poder e exigir uma alternativa real. Nossa tarefa urgente é construir e fortalecer organizações populares. Em paralelo, temos que construir e fortalecer um instrumento eleitoral que garante que o ANC não vá continuar a prejudicar o povo sul-africano”, afirmou.
Nesse processo, ele não descarta que se unam o Partido Comunista e mais setores do Cosatu, que aceitem enfrentar a pobreza, a violência contra a mulher e o sistema de propriedades privadas, o que ele colocou como os três principais desafios do país.