Quarta-feira, 26 de março de 2025
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Quando Roberto Benigni lançou A Vida é Bela, em 1997/8, houve uma enorme polêmica: era possível fazer humor – ainda que humor sério – com o nazismo? Até que ponto havia algum traço de realismo na história (um sobrevivente que vivia no Brasil lembrava de episódios que considerava correlatos aos utilizados na trama de Benigni)? O filme não seria um elogio da alienação, especialmente na relação do pai com o filho?

É um filme de travar a garganta, até pela divisão entre dois momentos radicalmente destoantes: numa primeira parte, dominada por um clima positivo, apesar das dificuldades, Guido (vivido por Benigni), busca seduzir Dora (Nicoletta Braschi); na segunda, a trama gira não em torno da vida, mas da sobrevivência, num campo de concentração, da família, agora formada por Guido, Dora e Giosuè, o menino de cinco anos interpretado por Giorgio Cantarini.

Ainda que haja esse recorte radical, há um elemento que liga as duas partes da trama: a alienação. Um certo entendimento de que a realidade pode ser alterada pela fantasia, de que a inteligência pode vencer o terror e de que é possível, por meio dela, estabelecer laços entre os dois lados.

Além da família, protagonista da trama, há uma personagem que liga as duas partes do filme: trata-se do capitão nazista doutor Lessing (Hörst Buchholz). Vamos falar dele mais à frente.

Na primeira parte da trama, na sua luta pelo amor de Dora, Guido utiliza uma série de truques para atrair a atenção da mulher, que estava perto de se casar com outro homem. Numa caminhada noturna pela cidade, Guido aciona uma série de conhecimentos para manipular as sensações de Dora.

Há algo de mágico nessa sedução, e Dora sabe disso. Ela não consegue decifrar os truques, mas termina, evidentemente, encantada pela disposição e pelas brincadeiras de Guido.

Se Guido é um livreiro e garçom fazendo bicos para pagar as contas, Dora é noiva e integra uma família tradicional. Na festa de noivado, com um ascendente político fascista, Guido é o garçom e vai precisar, mais uma vez, usar sua inteligência para destruir a festa de casamento.

Depois uma série de novos truques, Dora se dobra e os dois acabam se beijando sob a mesa. A felicidade e o amor sobrevivem, às escondidas, diante da festa fascista ao gosto do ex-noivo de Dora.

O amor vence o ódio: até quando a vida é bela?

O recado é claro: o amor, ali, vence o ódio. A inteligência de Guido é sedutora, é sexy e muito superior a sua “feiura” física (Benigni é tudo menos um galã de cinema). Dora entra no jogo e demonstra seu caráter livre e sua disposição para o amor, em meio a tanta gente aparentemente próxima que prefere os signos de opressão, do machismo e da morte.

Há então a cena do cavalo, que é o prenúncio do que virá: na festa, o preconceito contra os judeus se mistura a referências à colonização italiana na África, e Guido precisa fugir da fúria das famílias dos noivos numa saída nonsense, sobre um cavalo pintado de verde, em meio a saudações e sinais de caráter nazifascista.

Em seu trabalho de garçom, Guido conhecerá um oficial nazista, o doutor Lessing. Lessing admira a inteligência de Guido, e recorre a ele para decifrar enigmas. Guido é sempre mais rápido e inteligente que o alemão, e com isso a relação entre o judeu e o nazista parece poder existir, apesar da “natural” tensão.

Começa a segunda parte do filme. A inteligência de Guido mostra-se insuficiente para evitar a força da história em andamento, e todos, o tio de Guido inclusive, que jamais deixou de perceber o avanço do horror, são deportados para um campo de extermínio.

O tio morrerá rapidamente, mas Guido inicia um novo jogo: o de alienar o filho do horror, transformando o que é inexplicável para a criança numa gigantesca brincadeira, num grande jogo, cujo prêmio, para a criança, é ter alguma chance de sobrevivência.

A alienação que impede Guido e Dora de resistirem ou fugirem do avanço nazifascista na primeira parte vai cumprir, aqui, um papel oposto: é a certeza de que o horror em algum momento acabará, o que parece contrariar a realidade.

Guido passa a trabalhar para que, por meio de novos truques, muito semelhantes aos usados para seduzir Dora, Giosuè não sucumba à irracionalidade reinante e possa, de alguma forma, sobreviver o máximo possível no campo.

O jogo de alienar o filho da realidade expressa o desejo de proteger as crianças do horror político vivido. Mas também ensina algo fundamental para tempos assim: é preciso jogar com o poder, transformar fraquezas em força e esperar os momentos certos para se mexer e agir.

O monólogo de Lessing

Guido, trabalhando como garçom durante uma festa no campo de extermínio, encontra um velho conhecido: o doutor Lessing. O encontro é uma esperança de que o militar nazista ajude-o a sair do campo com o filho. A conversa, no entanto, é uma cena absurda: em vez de ajudar Guido e Giosuè, Lessing pergunta ao garçom qual a solução do enigma que ele havia apresentado a Guido no último encontro. A personagem de Benigni mal consegue responder.

O monólogo de Lessing, que em determinado momento afirma não poder “nem dormir” por não conseguir resolver o problema, parece-lhe absurdo. Como pode aquele que era sua última ligação com o “outro lado” mostrar-se tão alheio à realidade?

Nesse momento, Guido parece enfim se desalienar e alcançar a noção perfeita de que sua vida não será salva, mas que ainda há o que fazer para manter Giosuè vivo. O jogo precisa durar mais um pouco, porque há notícias de que os aliados estão chegando.

A Vida é Bela é, portanto, uma história sobre a alienação. A alienação que nos permite encontrar amor em meio à violência, a realizar a resistência pacífica, a lutar com as forças frágeis que temos, como indivíduos, diante da opressão.

Mas é também, e a figura do doutor Lessing resume isso de forma incrível, um retrato da alienação do opressor, que faz com que ele não enxergue nenhum laço de humanidade no outro e que não permite que ele veja nada além de seus pequenos e insignificantes problemas. Doutor Lessing não é capaz nem mesmo de perceber que o campo levará à morte o único conhecido capaz de resolver os enigmas, ou seja, os problemas que o atormentam.

A alienação que permite o avanço fascista é maior pela parte de que se deixa seduzir não pelo amor, mas pelo ódio. Ela constrói um muro que esconde toda a humanidade.

Esse muro nós encontramos muitas vezes nos últimos anos. Algumas pessoas jamais voltarão dele. São perdas definitivas. Teremos de aceitar isso, o que significa um pouco matarmos nossa própria possibilidade de sobreviver.

Mas a metáfora da criança a ser salva, a criança a sobreviver, está aí: é pelo futuro que vamos continuar resistindo, como der e como vier. Joguemos o verdadeiro jogo da vida, perder não é uma opção. Mas, infelizmente, em alguns casos, morrer será uma consequência inevitável.