Em meados de abril, um grupo de artistas urbanos projetou a palavra “FOME”, com letras garrafais, na Torre Telefónica, um dos maiores edifícios do centro de Santiago. Naquele então, a cidade já vivia conflitos nas ruas provocados por moradores de bairros pobres que reclamavam por não ter recursos para obter alimentos e produtos de primeira necessidade.
É preciso várias palavras para descrever este Chile de Sebastián Piñera, afundado em meio a várias crises. A crise da saúde e a crise econômica, embora sejam vistas pela imprensa local como problemas paralelos porém diferentes, parecem ser reflexos da mesma crise do modelo econômico, que vem fracassando há décadas e que já estava na pauta política social do país desde outubro de 2019, quando milhões de pessoas foram às ruas, em uma revolta social que exigia mudanças profundas, até que surgiu uma pandemia no meio do processo.
Quando os primeiros casos de covid-19 foram anunciados no Chile, na primeira semana de março, o país acabava de iniciar a campanha para o plebiscito constitucional que acabaria com a Carta Magna pinochetista, imposta em 1980. A data marcada para o plebiscito era o dia 26 de abril. Com o crescimento exponencial dos casos de coronavírus, e a quarentena decretada em alguns bairros de Santiago, a data foi adiada para 25 de outubro – curiosamente, no mesmo dia em que se completará um ano da maior marcha da revolta social de 2019, que reuniu mais de 2 milhões de pessoas na capital do país.
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A pandemia cresceu aos poucos no Chile, por isso o país passou longe dos casos considerados mais graves na América Latina, como os do Equador e do Brasil. No final de abril, o país mantinha diariamente uma média de mil novos casos e pouco mais de 10 mortes. A quarentena e os problemas econômicos decorrentes da mesma eram o principal assunto do país.
O desemprego no Chile já vem se aproximando dos dois dígitos desde 2019 e no final de maio ficou em 9,2%, a maior taxa durante este século. Se superar os dois dígitos durante este inverno, como o próprio Ministério da Economia admite que pode acontecer, será a primeira vez que o país supera esta marca desde a crise econômica dos anos 1980, em plena ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
As medidas do governo pareciam estar mais atentas às necessidades empresariais que às da sociedade. Primeiro, se decretou uma lei para permitir a suspensão dos pagamentos de empregados afastados devido à quarentena. Depois, devido à pouca quantidade de casos de covid-19 em comparação com outros países da região, se apostou no relato triunfalista, com o lançamento, na última semana de abril, de um plano de “nova normalidade”, que previa a reativação gradual das atividades econômicas. Sem fazer tanto alarde quanto os suecos, o Chile apostou na teoria da imunidade de rebanho, com “quarentenas flexíveis” (que permitem um vasto número de atividades entre o período das 10h às 18h) estabelecidas apenas nas regiões onde há mais de 500 casos ativos.
Duas semanas depois, o Chile passou de mil para 3 mil novos casos diários e no final de maio já tinha 6 mil. As mortes diárias, que eram entre 10 e 15, passaram a ser mais de 100. Os hospitais começaram a acusar falta de leitos.
Fotos Públicas
País governado pelo megaempresário Piñera interrompeu processo constituinte, iniciado com a revolta social de outubro
Após três meses de pandemia, o Chile já é o sétimo país mais afetado do mundo, terminando o mês de junho com 279 mil casos totais, apesar de que, durante este mesmo mês, a média de casos diários baixou de 6 mil para 4 mil, a tendência permite prever que o país logo superará Peru (que tem 282 mil casos totais e registra cerca de 3 mil novos contágios por dia) e Reino Unido (313 mil casos totais e uma média de mil novos casos por dia), podendo saltar para o quinto lugar. As “quarentenas flexíveis” já são uma realidade em quase toda a zona central do país, e em quase 90% da Região Metropolitana de Santiago.
Tudo isso em números absolutos. Se considerarmos que o Chile é o único país do mundo com menos de 20 milhões de habitantes entre os 20 mais afetados pelo coronavírus, se pode calcular que em números relativos, seu panorama pode ser considerado tão dramático quanto o do Brasil.
Ao menos na América Latina, o país andino tem a maior taxa de incidência, com 1,3 mil contágios por cada milhão de habitantes (a do Brasil é a terceira maior taxa da região, com 582 mil contágios por milhão de habitantes) e a segunda maior taxa relativa de mortalidade, com 267,4 óbitos por cada milhão de habitantes, atrás do Peru, que tem 269,5 (o Brasil é o terceiro, com 260,5 óbitos por milhão de habitantes). Apesar disso, poucos são os meios internacionais que destacam o Chile como uma das situações mais dramáticas do mundo com respeito à pandemia.
Diante desse cenário de crise econômica e de saúde incontroláveis, o governo de Piñera reagiu com a mesma lógica que tem seguido desde a revolta social de outubro de 2019. Primeiro, priorizando a sua própria imagem. Lançou uma “caixa de alimentos” a serem entregues às famílias mais vulneráveis do país, para enfrentar a pandemia, mas condicionou essa entrega: para receber o benefício, as famílias eram obrigadas a enviar ao Ministério de Desenvolvimento Social uma foto delas com a caixa. Oficialmente, a justificativa era a necessidade de um registro da entrega, mas as famílias também tinham que assinar um documento permitindo que o governo pudesse fazer propaganda com as fotos.
O segundo ingrediente da receita de Piñera para crises é o reforço ao autoritarismo. Além das medidas que dão mais atribuições às polícias e às Forças Armadas no controle social durante a pandemia, a mais nova iniciativa do governo, que vem sendo trabalhada nestes últimos dias de junho, é um decreto que permitiria ao Poder Executivo “filtrar” os projetos impulsionados pelo Legislativos antes de serem votados, como um veto presidencial, mas prévio ao trâmite.
Essa política visa boicotar projetos como o do imposto transitório sobre grandes fortunas, uma proposta do Partido Comunista e da Frente Ampla para que essa contribuição seja estabelecida durante três meses, para financiar uma maior ajuda financeira às famílias mais vulneráveis, com dificuldades de se sustentar durante a quarentena.
Em meio a todos esses elementos, também está o da crise política, evidente no país desde a revolta social de outubro de 2019. A oposição, apesar de lançar projetos como o do imposto transitório sobre grandes fortunas, carece de maior coesão e não consegue impor uma agenda alternativa mais robusta.
O governo segue o mesmo roteiro desde outubro passado. No começo de junho, se realizou uma errática reforma ministerial, que preservou o ministro mais questionado: Jaime Mañalich, da Saúde, que além da política de imunidade de rebanho também comprou uma briga com o Colegiado de Médicos, cuja presidenta, Izkia Siches, ofereceu um completo plano de combate à pandemia, baseado em experiências bem sucedidas em países como Nova Zelândia, Coreia do Sul e Portugal, mas que foi olimpicamente ignorado pelo governo.
Porém, uma semana depois, Mañalich acabou renunciando, quando seu Ministério foi obrigado, após uma reportagem do meio investigativo Ciper Chile, a corrigir as cifras de contágios e de mortes, aceitando cerca de 50 mil casos oficiais e 4 mil óbitos que eram contabilizados como “suspeitos”, mas não eram divulgados pelas estatísticas oficiais.
Por sua parte, os movimentos sociais, que ganharam força política no país a partir da revolta social de 2019, perdem espaço na agenda do país, já que não podem estar nas ruas, e tentam trabalhar, através das redes sociais, para manter vivo o espírito do processo constituinte. Antes da pandemia, as pesquisas de opinião apontavam que 72% da população chilena era a favor de uma nova Constituição, e 65% defendia a opção de uma Assembleia Constituinte, que se for aprovada no plebiscito, seria a primeira da história de um país que já teve nove Cartas Magnas, todas escritas e impostas por ditadores (como a atual) ou “grupos de notáveis”.
Também há pesquisas mostrando que a popularidade de Piñera em meio a esse cenário o transforma em um dos presidentes mais questionados da história do país: 73,6% das pessoas desaprova a sua gestão, e apenas 12,3% o aprova, segundo números do instituto Pulso Ciudadano, deste mês de junho.
A mesma pesquisa também mostra que os movimentos sociais começam a produzir sua primeira líder: a médica Izkia Siches, presidenta do Colegiado de Médicos, uma ex-líder estudantil que liderou os questionamentos ao Ministério da Saúde e é repudiada pela direita por seu passado como militante da Juventude Comunista – atualmente não é filiada a nenhum partido. Com apenas 2 meses de superexposição na mídia devido a pandemia, ela já aparece como possível figura presidencial, com 3% das intenções de voto. Caso não sejam adiadas, as eleições presidenciais no Chile acontecerão em novembro de 2021.