Documentos da Polícia Federal emitidos em março, junho e julho de 1974 comprovam que o presidente Jair Bolsonaro utiliza hoje os mesmos métodos do governo militar na década de 1970 para tentar esconder informações e dados sobre epidemias que assolam os brasileiros. Naquele ano de 1974, quando estavam em ação os mecanismos de opressão e censura da ditadura militar, o presidente da República general Ernesto Geisel queria esconder o surto de meningite que matou milhares de brasileiros. Hoje, o governo federal tenta censurar dados e informações sobre a pandemia de coronavírus que já matou mais de 38 mil cidadãos brasileiros em pouco mais de 100 dias.
O primeiro documento da Polícia Federal descoberto, que pela primeira vez é publicado pela imprensa em Opera Mundi, é de 18 de março de 1974. Foi emitido em forma de circular através de radiograma, com a rubrica “UUU”, que significa urgência urgentíssima. Teve como destino todas as Superintendências Regionais e Delegacias de Polícia Federal no Brasil. A classificação mostra que o assunto tratado era extremamente importante e necessitava de rápida divulgação.
Redigido no Ministério da Justiça, em Brasília, às 19 horas do dia 18 de março de 1974, uma segunda-feira, o comunicado tinha como objetivo impedir a veiculação de entrevista de médicos e funcionários que atuavam no Hospital Infantil Cândido Fontoura, localizado na Rua Siqueira Bueno, no bairro do Belenzinho, zona lesta da capital paulista. O hospital era conhecido como “Hospital das Crianças” – especializado no atendimento de crianças e adolescentes – onde estavam sendo tratadas as vítimas de meningite do tipo A.
“De ordem superior fica proibido divulgação, através meios comunicação social escrito, falado e televisado, notícias, referências, comentário e outras matérias relativa entrevista concedida no Hospital das Crianças de São Paulo pelos acadêmicos, residentes e internos”, era a mensagem contida no radiograma. Nesta cópia obtida pela reportagem, a ordem urgentíssima demorou um pouco para chegar a todos os cantos do país. Foi recebida somente no dia seguinte pela Superintendência da PF em Belo Horizonte, delegacia da Zona da Mata, às 15h50. O objetivo era evitar que informações dos médicos fossem divulgadas pela imprensa, uma vez que as autoridades sanitárias da cidade de São Paulo não conseguiam conter a expansão de meningite.
De acordo com informações do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), “a epidemia progrediu de forma concêntrica das áreas periféricas para o centro, em ondas, sem que os distritos anteriormente atingidos deixassem de apresentar alta incidência de meningite. No primeiro semestre de 1974 não havia uma única área da cidade sem registro de casos. As regiões mais pobres apresentavam maior risco”.
O pico da doença foi registrado, conforme pode ser verificado depois, em setembro de 1974. A vacinação em massa teve início somente no ano seguinte, quando teriam sido imunizadas cerca de 80 milhões pessoas. Dados compilados pelo jornal O Globo informam que somente em 1974, aproximadamente 2.500 pessoas morreram em decorrência de meningite somente na cidade de São Paulo.
Nas escolas e na maioria dos bairros, a população, sem vacina e sem informação, tentava todo tipo de sorte para evitar o contágio daquela doença desconhecida. Um dos meios mais comuns, mas sem eficácia científica, era um sachê contendo uma pedra de cânfora, anexada à roupa das pessoas por um alfinete. O regime militar então, ampliou as ações para esconder o que estava acontecendo. Situação muito semelhante com o que vem ocorrendo atualmente com a expansão dos números de infectados e mortos pela covid-19 pelo Brasil.
Planalto
‘Basta olhar para esses dois momentos da história e perceber que prática de Bolsonaro é autoritária’, diz pesquisador
Para se ter ideia da situação caótica na capital paulista, em junho de 1974, segundo Catarina Schneider e Michele Tavares, no estudo denominado “O retrato da epidemia de meningite em 1971 e 1974 nos jornais O Globo e Folha de S.Paulo”, o Hospital Emílio Ribas, que tratava dos doentes na cidade, tinha 300 leitos, mas estava com 1.200 pacientes internados. Foi quando as autoridades públicas não conseguiram mais esconder a situação e começaram a admitir publicamente, com muitas restrições, que havia epidemia de meningite.
Apesar de a doença ter se disseminado em outros países, havia uma única vacina que prevenia a meningite à época. Com a censura e não divulgação de dados, o governo militar não havia feito encomenda do produto junto aos laboratórios fabricantes.
Assim, com falta de vacina para todo mundo e com a doença aumentando entre os estudantes, a alternativa dos governos estaduais foi fechar as escolas onde eram identificados casos de meningite entre os alunos e funcionários.
Quando chegou o mês de julho de 1974, os militares apertaram a censura sobre a divulgação do surto de meningite. Numa terça-feira, dia 30, às 17h45, o Serviço de Comunicação da PF, no Ministério da Justiça, transmitia novo radiograma a todas as Superintendências Regionais e Delegacias de Polícias Federais no Brasil; de novo no modo urgência urgentíssima.
O comunicado apenas reforçava outra ordem que dias antes já havia sido enviada pelo Serviço de Informação do Gabinete do Ministério da Justiça (Sigab) a todo território nacional, e proibia divulgação de dados e notícias sobre meningite. O ofício é assinado pelo coronel Moacyr Coelho, diretor geral da Polícia Federal. Este documento foi encontrado por Lucas Pedretti, historiador e doutorando em sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador dos arquivos da ditadura.
Importante destacar que o coronel Moacyr Coelho foi um dos oficiais do Exército responsáveis pela organização da Escola Nacional de Informações (Esni), que tinha como objetivo fazer o aprimoramento dos integrantes do Serviço Nacional de Informações (SNI). Assumiu o posto de diretor geral da PF nos últimos dias do governo Médici, em março de 1974. Substituiu o general Antônio Bandeira. Ficou no posto durante toda gestão de Ernesto Geisel (1974-1979).
Dizia o texto do radiograma do dia 30 de julho de 1974: “Fim evitar dúvidas e interpretações, reitero termos RD 098/SIGAB, sentido manter proibida divulgação de dados numéricos, gráficos e estatísticos sobre meningite, bem como notícias sobre quantidade de vacinas importadas, fica igualmente proibida divulgação de matéria sensacionalista ou explorações tendenciosas, através da imprensa, de assunto relativo a meningite”.
Vinte minutos depois, de acordo com os dois comunicados descobertos por Pedretti no último dia 8 de junho deste ano, o próprio diretor geral da PF emite novo radiograma avisando que estavam liberadas notícias sobre meningite, inclusive os dados numéricos. Mas que continuava proibida a veiculação de notícias que alarmassem a população sobre a epidemia. Um modo de ação muito semelhante com o que vem sendo desenvolvido dentro do governo Bolsonaro.
“Acho particularmente interessante esse radiograma do dia 30 de julho que começa falando ‘liberadas as notícias sobre meningite, inclusive dados numéricos. Mas é proibida apenas dados de notícias tendenciosas que alarmem a população’. Ou seja, é o mesmo que o ‘placar da vida’ de Bolsonaro. Ele diz que os jornais podem falar sobre o tema, afinal é praticamente impossível que informações e dados de uma pandemia se tornem públicos, pois os dados estão aí. As pessoas estão vendo. Então não tem como sufocar totalmente a sociedade e a imprensa de falaram disso. Mas você impede que isso seja tratado da forma como deve ser feito, apresentando número de mortos, número de casos. Ou seja, permite a divulgação, mas com a visão de que não pode ocorrer informação tendenciosas para alarmar a população. Como aconteceu na ditadura. Você pode até falar sobre os casos, mas só pode falar sobre aspectos positivos. Você não vai divulgar o número de mortos, vai divulgar o número de pessoas que se curaram”, explica o pesquisador da UERJ.
O ‘placar da vida’ foi criado pela Secretaria de Comunicação Social (Secom) de Bolsonaro e vem sendo compartilhado nas redes sociais do Ministério da Saúde desde 27 de abril. Sua instituição foi solicitada pelo ministro general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, que vinha reclamando das notícias e da cobertura jornalística da epidemia no Brasil, que em seu entender divulgam apenas “fatos negativos”.
Desde a última sexta-feira, dia 5 de junho, o governo Bolsonaro resolveu modificar a contabilização dos dados da covid-19 no país. Os boletins diários deixaram de informar o número acumulado de mortes e de casos confirmados, assim como a quantidade de óbitos em investigação. Antes, o Ministério da Saúde havia alterado os horários de divulgação dos boletins, passando do fim da tarde para o início da noite e depois para depois das 22 horas.
Já na última semana, os dados também foram retirados do site do governo, o que levou a reclamação de médicos e estudiosos em todo território nacional e também internacionalmente. Na noite do dia 8 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o Ministério da Saúde retomasse a divulgação dos dados acumulados sobre vítimas do coronavírus em até 48 horas. No dia seguinte, o governo federal retomou a divulgação das estatísticas seguidas por todos os governos do mundo.
O Ministério da Saúde vem sendo comandado pelo general Eduardo Pazzuello desde a saída do médico Nelson Teich do comando da pasta, em 15 de maio, antes de completar um mês à frente do ministério. Desde então, o general já nomeou 17 militares para cargos de confiança na cúpula da Saúde. Pazzuello havia anunciado também que haveria uma nova metodologia para compilação de dados da covid-19 no Brasil, tendo como base os números de mortes segundo a data do óbito, e não mais com a data de notificação, ao contrário do que é adotado na maioria dos outros países.
“Desde que começou a pandemia de coronavírus, a gente ouviu e lembrou um pouco da epidemia de meningite durante a ditadura, sempre com a lembrança sobre a censura. Mas essas tentativas absurdas do governo Bolsonaro maquiar ou ocultar os dados trouxeram a esse debate muita força. Acho inquestionável a semelhança do que está acontecendo hoje com esse evento de 1974. É evidente que para as ditaduras, para os regimes autoritários, não há nenhum interesse em dar publicidade a fato que está ocorrendo, que demonstra cabalmente a incompetência desse próprio governo, desse próprio regime. E demonstra uma coisa que pode ser vista negativamente pela sociedade”, explica Pedretti.
Antes da ofensiva censória de julho de 1974 em São Paulo, a Polícia Federal, a mando do presidente Geisel, também proibiu divulgação de reportagens sobre surto de meningite na Bahia, especificamente na região da cidade de Caravelas. O comunicado assinado pelo mesmo coronel Moacyr Coelho, de 21 de junho, era explícito: “De ordem superior fica terminantemente proibida div (Sic) através meios comunicação social, falado e televisado, notícia, comentários, referência ou outra matéria sobre possível existência de surto moléstia transmissível na região de Caravelas, estado Bahia, até que as autoridades do Ministério da Saúde concluam as investigações já em curso”.
“A semelhança da tentativa do governo Bolsonaro de divulgar apenas o ‘placar da vida’ com a censura da ditadura durante a epidemia de meningite é tão grande, tão chamativa, que nem precisa explicar muita coisa. Basta olhar para esses dois momentos da história brasileira e perceber que a prática de Bolsonaro é autoritária, típica de um regime ditatorial”, relata Lucas Pedretti.