A primeira contaminação por coronavírus em favela foi confirmada pela Secretaria Municipal de Saúde há 10 dias em uma das maiores comunidades da zona oeste do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus. Ali, como em outras periferias, favelas, morros e quebradas pelo país, as diretrizes de prevenção do Ministério da Saúde para quase 14 milhões de brasileiros não são fáceis de cumprir. Nesses territórios classificados pelo IBGE como “aglomerados subnormais”, os comunicadores populares são fundamentais.
O próprio ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, na coletiva de imprensa da última segunda-feira (30/03), elogiou as precauções adotadas pelas comunidades: “(…) é muito importante que cada liderança desse país proteja as suas comunidades.”
Na ausência de medidas do governo federal direcionadas às favelas, a Agência Pública conversou com comunicadores populares em cinco capitais do país — Belém, Salvador, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro — para mostrar como estão se articulando no combate à pandemia de coronavírus.
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Em São Paulo, um podcast com linguagem da quebrada
“Quando a gente pensa comunicação ou periferia no Brasil, é uma questão muito complexa, porque a compreensão sobre território muda. Quando a gente está em São Paulo, vamos pensar em bolsão populacional, em distritos, em aglomeração. Quando se trata de favelas do Rio é outro rolê demográfico, quando a gente vai pro nordeste é uma parada ainda mais diferente, quando a gente pensa articulação nacional de comunicadores, a gente se depara com essas complexidades do território”, diz Ronaldo Mattos, comunicador e integrante do projeto Desenrola e Não Me Enrola, que reúne comunicadores periféricos da cidade que é o epicentro da Covid-19.
Com o intuito de combater fake news, dar dicas de prevenção, atualizar as medidas do governo, Mattos se juntou à jornalista Gisele Brito e ao comunicador Tony Marlon dos sites Periferia em Movimento e Alma Preta. Juntos, passaram a produzir o podcast Pandemia Sem Neurose.
“A gente pensou em um podcast curto, de 2 a 3 minutos de duração, que a pessoa não vai perder muito tempo acessando, que vai carregar rápido no celular, não vai ocupar espaço de memória do aparelho e pode ser reproduzido numa escala maior. Isso tem dado muito certo. A gente tem recebido retornos de idosos, de pessoas que moram em regiões completamente diferente. Da zona sul ao extremo da zona norte”, diz.
Falar para a periferia e não sobre a periferia é para Ronaldo uma “questão estruturante”, diz. “Se não, fazer comunicação na quebrada se torna só um produto jornalístico. Não importa se você mora na quebrada ou não. Você vai produzir conteúdo sobre os territórios e é algo que tem um valor muito forte. No entanto, se essa informação não vai parar nas mãos de quem precisa, qual é o valor público desta reportagem? Desse conteúdo jornalístico? Ele tem que servir para a discussão entre os mais velhos, entre a juventude que está indo pro pancadão, porque ainda não entende a gravidade em relação ao vírus e as possibilidades de contágio. Então a gente tem se atentando a isso”, esclarece.
Em São Paulo, outras ações estão ocorrendo nas duas maiores favelas do estado. Em Heliópolis, A União de Núcleos e Associações dos Moradores (UNAS) vem promovendo campanhas para arrecadação de alimentos e material de higiene. Recentemente também lançaram uma pesquisa inédita sobre os impactos do Coronavírus na favela. A pesquisa foi realizada online entre os dias 27 e 29 de março. Dos 653 formulários respondidos se destaca a questão econômica: “68% das famílias de Heliópolis já tiveram perdas no rendimento mensal desde a adoção das medidas de isolamento. Destas, 19% afirmam não contar com mais nenhuma renda.”
Em Paraisópolis, a União dos Moradores montou comitês com lideranças dos bairros. Segundo o presidente da associação, Gilson Rodrigues, “foram identificamos 420 líderes, que se voluntariaram e que vão monitorar 50 casas, em média. A ideia é cobrir 21 mil domicílios e atingir a população de 100 mil habitantes que vivem na favela”.
Desmontando fake news na periferia de Belém
Juraci olha firme para a câmera. “A gente resolveu fechar a via para reivindicar o direito de ter água. Por que não está chegando. Quando a água chega, chega muito amarela”, diz o morador do bairro Terra Firme, na periferia de Belém, Pará — com 60 mil habitantes. Quem grava a cena é a estudante Izabela Chaves, 25 anos, moradora local e comunicadora popular. O gatilho do protesto do último dia 18 de março na Avenida Perimetral, que foi fechada com fogo ateado em paus, resto de móveis e pneus foram as notícias sobre o coronavírus. “Eles estavam preocupados em ir trabalhar, tomar banho e fazer as coisas básicas”, diz Izabela, sobre alguns moradores que estavam comentando “sobre esse tal vírus” durante a manifestação. Estudante de cinema e audiovisual na Universidade Federal do Pará (UFPA), a jovem faz parte do coletivo Tela Firme, voltado produção audiovisual e formação de jovens da periferia de Belém.
No Pará, que até momento tem 32 casos confirmados e 33 suspeitos de covid-19, a Tela Firme se uniu à coalizão LabPerifaCom ou Laboratório de Jovens Comunicadores de Periferias de Belém, formado às pressas no dia 22 de março, com objetivo de monitorar conteúdos oficiais, levantar pautas e denúncias das periferias diante da pandemia. Eles combatem fake news e geram comunicação de acordo à realidade local.
A professora Lilia Melo, coordenadora do projeto Cine Clube TF — parte da coalizão — ressalta a importância dos comunicadores periféricos nesse período. “Com a questão do coronavírus, nós aproveitamos a nossa rede para que a gente pudesse, através de uma linguagem jovem, para o público jovem, orientar quanto a prevenção e o combate ao vírus. A gente percebeu que aqui no bairro existem alguns jovens que ainda estão negligenciando a seriedade do assunto. Que dentro da sua realidade e das dificuldades que enfrentam, acabam ridicularizando algumas recomendações do governo federal e estadual, que não atingem a realidade da periferia”, diz Lilia, que já foi finalista do Global Teacher Prize 2020 e considerada a melhor professora do Brasil (MEC-2018). Segundo a educadora, esse é um dos motivos que revelam o mérito de iniciativas de comunicação local.
Agência Pública
Panfleto na favela do Totó, em Recife
Em Recife, cartazes traduzem a mensagem oficial
A escolha da linguagem também foi certeira para a cineasta periférica Yane Mendes, que, mesmo sendo “zero designer” decidiu adaptar as informações passadas pelo Ministério da Saúde, e direcioná-las aos cerca de 2.500 moradores da favela do Totó, em Recife, Pernambuco. Incomodada com o que considera descaso dos órgãos municipais com envio do material informativo esclarecendo as medidas de prevenção ao coronavírus, ela própria foi buscar os cartazes. No entanto, diante do texto técnico, institucional e protocolar, Yane elaborou um comunicado e começou a colar ao lado dos cartazes criados pela secretaria de saúde, fazendo uma espécie de tradução da mensagem institucional. “A ideia é passar a mensagem direta, com poucas palavras, mesmo que seja simples”.
Yane afirma que a ação de colagem dos comunicados rendeu frutos, pois alguns moradores que não a conheciam começaram a procurá-la para saber das próximas intervenções. Pessoas de outras comunidades também entraram em contato para solicitar o material, enfatizando a importância da linguagem utilizada, que fala diretamente com a população. A partir disso, Yane criou um grupo de Whatsapp com os interessados que pretendem construir formas de comunicação para onde vivem. “Percebi que, no momento, tenho que começar pelo mais próximo, que é a comunidade que eu nasci. Eu comecei ‘sozinha’, mas coloquei a Rede Tumulto, que é uma iniciativa que estou tendo com dois amigos, porque, por mais que a ideia seja minha, a gente tem que entender que é o coletivo. Ao mesmo tempo [a ação]
foi muito inspirada pelo grupo #CoronaNasPeriferias. Ver que tem outras pessoas produzindo nas suas favelas, empolga muito”, diz.
Na periferia de Salvador, a ideia é não deixar a comunidade em pânico
A aflição com a disseminação de notícias falsas sobre o coronavírus também preocupa Jefferson Borges, publicitário, ativista social e fundador do portal NORDESTeuSOU. Borges mora na periferia de Salvador, no bairro Nordeste de Amaralina. No momento em que falava com reportagem, dividia a atenção entre as perguntas e a notícia que a Secretaria de Saúde municipal divulgava na tevê local sobre novas contaminações por coronavírus. “A secretaria está divulgando agora os números nos bairros e o nosso é o único da periferia que não tem nenhum caso ainda. Cajazeiras, Itapuã e Engomadeira, são três bairros periféricos que estão com um caso cada”.
Jefferson diz que as notícias falsas deixam os moradores amedrontados e sem saber no que acreditar. “Por aqui, tem muitas correntes e, às vezes, pinta notícias que alguém morreu. Então a gente tem que verificar, para não deixar a comunidade em pânico”, comenta.
Na tentativa de mitigar os impactos dessas notícias, o coletivo adotou estratégias e linguagens de informação visando esclarecer os moradores sobre a real situação local. Para isso, os integrantes do portal começaram a distribuir panfletos em alguns pontos de circulação, pedindo para as pessoas evitarem aglomerações. O material é focado em medidas de prevenção distribuído por celular e também nas ruas — além disso, um carro de som circula com informações durante 5 horas por dia.
Rio de Janeiro, “o que estava na Europa, também estava aqui”
Uma comunidade em que os comunicadores não tiveram tempo para combater notícia falsa foi a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. No dia 22 de março, a Secretaria Municipal de Saúde confirmou o primeiro caso de contaminação em uma das maiores favelas da zona oeste da cidade. Para Ricardo Fernandes, ator e morador da CDD, “depois do primeiro caso confirmado, as pessoas passaram a ter mais consciência que de fato era algo sério, que o que estava na Europa, também estava aqui. Ficou muito nítida essa mudança no comportamento do moradores”.
Ricardo faz parte da recente iniciativa de união dos moradores, ativistas, profissionais da área de saúde, coletivos e indivíduos, a Frente CDD. A ação surgiu a partir da necessidade de reduzir os efeitos do coronavírus na comunidade. “Já tinham dois coletivos da CDD fazendo uma campanha de doação de alimentos. E aí a gente criou a Frente para ampliar a campanha, para ir além de doação e trabalhar a conscientização do moradores. Mas o objetivo máximo da Frente é reduzir todos os impactos do coronavírus. Já não basta os impactos que temos diariamente só por sermos uma favela no Rio de Janeiro. Violência, falta de saneamento básico, falta de aula, falta de água. Todos esses impactos já estão no nosso cotidiano. Com o corona, todos eles se potencializam”, reclama o comunicador e ativista.
Em outra comunidade, no Complexo do Alemão, comunicadores se organizaram para fazer a própria campanha de conscientização. Criaram faixas e informativos colados nos postes, distribuíram panfletos e fazem conversas corpo a corpo pelas ruas chamando atenção sobre a importância de tentar evitar o coronavírus.
Na última quinta-feira, 26 de março, a Fundação Oswaldo Cruz convocou por meio do Youtube uma coletiva de imprensa apenas para comunicadores populares de favelas do Rio de Janeiro. No entanto, outros estados estavam representados. Mais de 100 pessoas participaram da coletiva enviando questões para o Coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz, Rivaldo Venâncio, e para o infectologista do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, André Siqueira.