Quase quatro meses após o primeiro decreto de quarentena ser publicado no Brasil, em São Paulo, os números da pandemia de covid-19 no país não dão indícios de queda sustentada. Nos últimos sete dias, foram registrados em média 1.056 novos óbitos por covid-19 no Brasil. A maior parte das mortes notificadas ocorreu no estado de São Paulo, que contabiliza 264 mortes pela doença em média, sendo 85 delas na capital. Tanto o país quanto seu estado e cidade mais atingidos em números absolutos estão em platô, com a média diária de óbitos e de casos resistindo em cair.
“O que tem no horizonte são mais mortes. Quanto mais contatos nós tivermos, ou seja, quanto menos isolamento social nós tivermos, mais casos e mais mortos e ponto”, aponta o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ex-secretário municipal de Saúde de São Paulo.
Em entrevista à Agência Pública, ele afirma ver com ressalvas as teses de que a capital paulista e outras cidades bastante atingidas, como Manaus, possam estar próximas de alcançar a imunidade de rebanho e critica a reabertura promovida no Brasil. “A flexibilização que estamos promovendo mais parece um liberou geral, pelo menos do ponto de vista da população que está saindo nas ruas. Já temos congestionamentos, já temos tudo, estamos voltando à velha normalidade, não ao novo normal”, diz.
Para Vecina Neto, a aposta brasileira em testes sorológicos de qualidade questionável é “uma bobagem”, já que estes só são eficazes para identificar o vírus no fim da infecção, não impedindo a disseminação. “Eu quero saber quem vai ter [os sintomas], principalmente no começo da pandemia. Ou era RT-PCR [exame considerado padrão-ouro no diagnóstico de covid-19 e capaz de identificar a infecção nos primeiros dias] ou não precisava comprar esse tipo de testes. É dinheiro jogado fora, por ignorância do pessoal do Ministério da Saúde, e pela pressão popular, para dar uma resposta”, afirma.
Especialista em gestão de saúde e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), ele considera um “desastre inominável” a condução da epidemia pelo governo federal. Para o sanitarista, a baixa quantidade de testes realizados no Brasil e problemas como a entrega de kits incompletos são consequências da falta de coordenação e de comando do Ministério da Saúde – que já trocou duas vezes de ministros desde o início da pandemia e mantém um militar interino, o general Eduardo Pazuello, na pasta há dois meses. “Não dá para conviver com esse tipo de incompetência que nós estamos apresentando. Nós estamos testando três casos para cada descoberta. No resto do mundo, os países que melhor testam, testam 30 por caso diagnosticado”, afirma o médico sanitarista.
São Paulo testou menos, mas pode passar Nova York em casos e provavelmente em óbitos, em números absolutos. O que isso representa e como chegamos nesse cenário?
Olhar o número absoluto é ruim, não é inteligente. É morte por milhão de habitante, essas coisas que a gente tem que olhar. Número absoluto da China, da Índia é incomparável com San Marino, Mônaco, mas pode ter lá uma epidemia mais grave dependendo do número relativo. São Paulo tem número grande de casos, mas ele não foge dos padrões epidemiológicos mundiais. Eu não acho que nós estamos estourando…
Somos o segundo país com o maior número de casos, mas somos um país de 200 milhões de habitantes, que tem um bom sistema de vigilância epidemiológica. Se você olhar, por exemplo, Nigéria, que tem 170 milhões de habitantes, eles não têm um sistema de vigilância epidemiológica que mereça esse nome. A Indonésia, quase 200 milhões, também tem problemas com registros dos casos.
Qual a forma correta de olhar para o nosso cenário atual?
Acho que a gente tem que olhar para o número relativo – esse é o número quente. E aí é uma tragédia o número de casos que temos. É muito grande, mas não foge ao padrão dos países europeus, do número de casos por milhão de habitante.
O que tem aqui no Brasil – e aqui em São Paulo em particular – é o baixo número de testes. Nós fizemos muito poucos testes e de novo estamos tendo problemas, está faltando um pedaço do exame. O teste tem várias etapas, você tem o pedaço do teste que é a extração do RNA, depois a amplificação e depois, finalmente, a leitura, mas esquece de comprar o extrator. Então é um caso típico daquela piada do inferno brasileiro.
Não dá para conviver com esse tipo de incompetência que nós estamos apresentando. Nós estamos testando três casos para cada descoberta. No resto do mundo, os países que melhor testam, testam 30 por caso diagnosticado.
Esse é um problema grave, porque sem fazer teste eu não diagnostico e não afasto pessoas que vão contaminar outras pessoas. Tem que testar os contatantes daqueles que eu positivei, e, dando positivo, você tem que conseguir criar uma regra de isolamento. E isso nós não estamos fazendo, e a epidemia fica meio solta.
Quem lê a Folha de S.Paulo [de segunda-feira] acha que está acabando a epidemia. Acho que algum tipo de equívoco a Folha deve ter cometido. Eu acho que o [biólogo] Fernando Reinach, quando analisa a última pesquisa que fizeram de prevalência, fala que tem alguma coisa de diferente acontecendo e que a gente precisa entender o que é. Isso é verdade. Essa epidemia já nos deu muitas surpresas. Então é possível que tenhamos mais uma surpresa aí, mas precisa olhar com calma.
Esse estudo do Fernando Reinach fala da possibilidade de São Paulo, capital, se aproximar ou chegar a uma imunidade de rebanho antes de uma vacina…
Ele fala isso com muito cuidado. Eu não repetiria o que ele fala sem acrescentar todo o cuidado que ele coloca no artigo. Ele fala que essa é uma das coisas que nós temos que explicar, se estiver acontecendo. Então, calma…
Mas é uma possibilidade?
Do ponto de vista teórico, é. Mas eu não contaria com isso neste momento.
Considerando esse cenário hipotético, a que custo de vida nós chegaríamos nessa imunidade caso ela seja alcançável?
Se a hipótese dele é correta, não vai aumentar muito mais, porque nós estamos próximos da chegada da imunidade coletiva. Agora, na hipótese de ser uma imunidade que precise chegar a 70% da população que tenha tido a doença, aí chegaríamos a 600, 700 mil casos de óbito [no Brasil].
Em relação a São Paulo, as medidas de distanciamento social foram suficientes? Foram eficazes e vieram no tempo certo?
Até bem pouco tempo atrás, estávamos vivendo uma boa realidade. A flexibilização que estamos promovendo mais parece um liberou geral, pelo menos do ponto de vista da população que está saindo nas ruas. Já temos congestionamentos, já temos tudo, estamos voltando à velha normalidade, não ao novo normal. O esperado seria o novo normal. Eu estou muito preocupado com isso.
Sobre a reabertura, em um artigo que você faz para o Estadão, você fala de três regras de ouro: queda sustentada do número de casos, nível de isolamento social alto e taxa de ocupação das UTIs abaixo de 60%. Essas regras foram cumpridas para a reabertura?
A das UTIs, sim. As outras duas, não. Nós estamos num platô lá em cima, mas não temos queda sustentada de 14 dias. E não temos isolamento social, temos um liberou geral: shoppings, restaurantes.
Essa reabertura não está sendo feita de maneira correta, então?
Se a tese do Reinach estiver errada, nós vamos enfrentar um aumento muito grande da mortalidade nas próximas semanas. Eu não vejo como uma segunda onda, é uma continuação da primeira, um repique.
O número de casos continua subindo, mas a taxa de ocupação das UTIs diminuiu, o número de óbitos está em um platô. Qual é a melhor forma de aferir qual estágio da pandemia estamos e assim promover uma reabertura correta?
São duas coisas: teste RT-PCR, teste molecular para saber como a doença está evoluindo. E, na falta desses testes, acreditar nessas pesquisas [de soroprevalência] para a gente ter um mínimo de capacidade de enxergar no escuro. Porque estamos andando no escuro.
No estágio atual da pandemia, você acha que não deveria estar reabrindo?
Com o que eu sei, e não é tudo, a minha opinião é que não.
Como você avalia a gestão no Brasil e em São Paulo da pandemia?
[Em São Paulo] os gestores públicos conseguiram fazer uma coisa que achei muito importante, que foi expandir o número de leitos de UTI, que impediu que nós entrássemos em colapso. Isso foi uma coisa muito positiva. Existem as denúncias de problemas nas compras de respiradores, uma fila de 16 mil testes que não conseguia ir à frente. Aí o Butantan veio e, aparentemente, resolveu. Essa incapacidade de realizar os testes eu acho grave.
Roberto Parizotti/Fotos Públicas
‘O que tem aqui no Brasil, e aqui em São Paulo em particular, é o baixo número de testes, afirma Gonzalo Vecina Neto
O governo federal recorrentemente credita os problemas à condução dos estados e municípios. Qual o papel do governo federal na condução da crise?
Do ponto de vista nacional, o desastre é inominável. A falta de Ministério da Saúde, a troca de ministro, a incompetência do ministro general do exército… Não tem lógica nenhuma a gente passar por esse tipo de dissabores que passamos. É uma vergonha.
O governo federal tentou impor sua vontade e foi o STF que disse para o Bolsonaro que ele não podia dizer o que abre e o que fecha. Nós temos que creditar ao Congresso, que editou leis, que derrubou vetos, que negociou alternativas para a população, se não nós não teríamos andado, seria um desastre a condução.
Qual é o impacto dessa falta de comando e de diretrizes nacionais por parte do Ministério da Saúde?
Esse problema que estamos tendo em relação à testagem é fruto direto dessa falta de capacidade do governo federal. Eles tinham que ter ido atrás de indústrias que retivessem seu ciclo produtivo para ir fazer EPI, pensar em aumentar a produção de respiradores. Quem pode importar sem burocracia é o governo federal. Quem pode imprimir dinheiro é o governo federal. Não tem desculpa.
Quais foram os erros cometidos ao longo da pandemia no Brasil que nos levaram a esse cenário?
Acho que o erro mais importante foi a falta de liderança federal num país que é uma república federativa. Não ter a liderança federal fez com que houvesse uma ação desconectada dos estados em relação ao isolamento, em relação à política de testagem.
Ainda sobre a testagem, o Brasil tem feito muito teste sorológico. Esse é um caminho adequado?
É uma bobagem. Teste sorológico não serve para nada do ponto de vista de saúde pública. Serve para a pessoa saber se já teve. E, ainda por cima, teve aquele momento lá atrás, março, abril, que houve pressão para comprar teste, e de repente aparece um monte de gente vendendo teste que não tinha registro na Anvisa. Aí força o órgão a dar registro para os testes, e a Anvisa dá registro provisório para um monte de porcaria que ela não testou, que ela não validou. Agora o mercado tem mais de cem testes, só tem um que foi validado, a maioria deles são testes ordinários.
Mas para que eu quero saber quem já teve? Eu quero saber quem vai ter [os sintomas], principalmente no começo da pandemia. Ou era RT-PCR ou não precisava comprar esse tipo de testes. É dinheiro jogado fora, por ignorância do pessoal do Ministério da Saúde, e pela pressão popular, para dar uma resposta.
Agora o que faz com esses testes? Distribui e vê o que acontece. Aí tem um monte de prefeito distribuindo teste e fazendo teste na rua, mas que não ajuda o combate à epidemia. Saber que você já teve não muda nada. Mas saber que você vai ter [os sintomas] te leva a não contaminar mais ninguém.
Você disse que, apesar dos números altos, o cenário de São Paulo e do Brasil não foge do que está acontecendo lá fora. Mas lá fora a testagem também está sendo feita dessa forma?
Não. Eles estão testando muito mais. Espanha, Itália, Inglaterra, Alemanha, França, Portugal testaram muito mais que o Brasil. E melhor também. Testaram RT-PCR. Fizeram também testes sorológicos, mas o grosso foi teste molecular.
Essa baixa testagem e o nível alto de positivação dos testes são sinais de que o Brasil ainda tem subnotificação alta, que ainda está olhando para trás no combate à pandemia?
Com certeza nós temos uma subnotificação importante. E, quando você correlaciona os dados [das pesquisas de soroprevalência] de pessoas que já tiveram doenças com o número de confirmados, nós estamos com uma subnotificação de quatro a dez vezes, dependendo de como foi feita a amostra. Por que está subnotificado? Porque não faz teste. Até agora nós só fizemos testes de pessoas que chegaram no hospital, que tinha que saber se estava doente ou não para pôr ou não no “covidário”. Fazia o teste para isso. Ou quando a pessoa morria, para enterrar como covid-19. Outro indicador indireto de que estamos testando pouco: o número de mortes com SRAG [síndrome respiratória aguda grave] como diagnóstico provisório é imenso. Vários artigos já chegaram a essa conclusão. Quando você compara o número de mortes de 2017, 2018 e 2019, a média de mortes por SRAG foi de 50 mil casos/ano. Esse ano, até abril, nós tivemos 50 mil óbitos. Tem um monte de casos de SRAG que não foram diagnosticados, mas que são covid-19.
Você diz que, com base nos números relativos, o Brasil tem um cenário semelhante ao de outros países. Mas, levando em conta essa subnotificação, você acredita que o cenário no Brasil é pior?
Continua com um cenário semelhante. Nós não tivemos muito mais casos que esses outros países. Nós tivemos mais casos e mortes de pobres, mas a prevalência do número de casos na sociedade não é maior do que nós tivemos na Europa, principalmente. O Sudeste Asiático é outro mundo, principalmente a China, que conseguiu fechar o país de uma maneira que nós não conseguimos.
A pandemia tem afetado mais profundamente as populações mais pobres? Por quê?
Isso aconteceu no mundo inteiro, não é um fenômeno brasileiro. Quando você vê a mortalidade em Nova York, ela aponta para isso. Morreram mais negros proporcionalmente do que brancos. Quando você olha para o Brasil, isso está escarrado.
Primeiro porque nós temos uma porcentagem muito maior de pobres do que qualquer outro país [entre os mais afetados], dado que a desigualdade social no Brasil é uma coisa espantosa. E por que morre mais pobre? Porque pobre tem problema de comer, tem que sair na rua e, ao sair na rua, se contamina. Se contamina mais porque tem que sair mais. Eu quase não saio de casa, eu vou uma vez por semana fazer compra e olhe lá. Pobre não, tem que ir todo dia, porque, se não sair na rua, não come de noite. É mal alimentado, é subalimentado. Tem problemas inclusive do ponto de vista de fazer frente às necessidades do corpo. Tem as comorbidades maltratadas, como é de esperar de uma pessoa que não têm acesso adequado a serviços de saúde. Deu a lógica.
Falou-se muito de uma dicotomia entre saúde e economia, que você questiona numa coluna no Estadão. Na prática, alguma das duas foram priorizadas no Brasil?
Na prática, nós estamos muito distantes de priorizar saúde. Nós estamos aprendendo a importância do SUS no meio dessa epidemia. Se não fosse o SUS, aí seria mesmo uma catástrofe equatoriana, o que aconteceu lá em Guayaquil. Tirando algumas partes do país, o SUS conseguiu dar uma bela de uma resposta. Mas nós temos que aprender a importância de ter um sistema de saúde e aprender como diminuir as fragilidades do sistema de saúde.
Em São Paulo e no Brasil chegamos em um “platô”’ bem alto de casos e óbitos. Que prognóstico você faz para as próximas semanas e meses da pandemia por aqui?
O prognóstico que eu posso fazer é [com base em uma] imunidade coletiva de 70%. Nós estamos com 10%, 15% de prevalência. O prognóstico que eu posso fazer, olhando para isso, com o que nós sabemos hoje, é que nós vamos continuar tendo um monte de casos e mortes.
Agora, não sei, nós estamos no começo. É possível que tenha alguma coisa diferente? É possível. Nós estamos aprendendo com essa pandemia todos os dias. Todo dia é dia de uma novidade. Eu acho que tendemos a continuar nesse platô alto, a não ser que exista alguma coisa que não sabemos. São essas teses que estão voando por aí. Tem que ficar com as barbas de molho para se permitir aprender. O que tem no horizonte são mais mortes, se nós tivermos mais contatos. Quanto mais contatos nós tivermos, ou seja, quanto menos isolamento social nós tivermos, mais casos e mais mortos e ponto. A porcentagem é por aí: 1% morre. Então não tem muita saída.
(*) Reportagem publicada originalmente em Agência Pública.