Era no Salão Vermelho que a gente deslizava. Enquanto não chegava a kombi do seu Carlão, ficávamos jogando futebol aos derrapões, a bola era uma garrafinha d’água esmagada. Como eu me metia entre os meninos ganhara o apelido de Maria Machinho. No ensino médio, na época chamado de segundo grau, havia o Salão Cinza que sempre nos açulou a curiosidade, mas como era necessário tomar uma passarela para chegar até ele, achávamos que o tempo do recreio não seria suficiente para a travessia e ficávamos lá mesmo, em nossos territórios, correndo atrás uns dos outros nos pega-pegas e por entre os matagais que nos eram proibidos e, por isso mesmo, desejados. Atrás do ginásio de esportes havia um enorme campo cheio de plantas e matos e lá no final podia-se ver a guarita do vigilante, toda velha e de madeira, dizíamos que era a morada da bruxa e eu juro que umas tantas vezes, porque se teciam pavor e vontade dentro dos meus olhos, cheguei a ver o bico do chapéu da matinta por uma fresta.
Uma vez disseram que uma menina pisou numa cobra bem em cima da cabeça e ela explodiu. Falaram que o homem do saco ficava perto do jardim de infância porque roubar criança menorzinha era mais fácil. Também o bedel certa manhã ralhou comigo porque eu havia adotado uma gatinha que aparecera sob minha carteira, ele me mandou lavar a mão e disse que eu poderia contrair raiva e morrer se continuasse pegando em qualquer bicho de rua. Mas não era qualquer bicho, tinha até nome que eu dei: Selminha.
No dia do eclipse foi uma sangria desatada. Na televisão informaram que não devíamos olhar diretamente para o sol. Na hora do intervalo os professores de educação física organizaram uma fila e um aluno de cada vez podia olhar através de uma chapa de raio-x e testemunhar o fenômeno. Eu fiquei ansiosa e olhei antes, sem proteção alguma, vi o finzinho da escuridão em cruzamento com a luz e logo em seguida comecei a sentir uma dor de cabeça muito forte. Me desesperei. Acabou o intervalo, sentei na carteira e não consegui prestar atenção em nada. Depois de passar a lição de matemática, a professora Ivana foi para a sua mesa e ficou. Visitei-lhe três vezes com a mesma pergunta: tia, depois de quanto tempo a gente fica cego se olha para o eclipse sem chapa de raio-x?
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Nunca pensei que encontraria todo aquele açúcar num consultório de dentista
A resposta vinha sempre em um tom sádico, professora Ivana dizia não saber do assunto mas que seria bom eu contar pra minha mãe que desobedeci as orientações dos professores, daí ela saberia o que fazer comigo. Tremi de medo. Imaginei que até o final da tarde eu teria perdido inteiramente a visão. Que nada. Depois de algumas horas a dor de cabeça cessaria e eu continuaria enxergando.
Professora Ivana também pareceu não se importar quando eu disse que me sentia triste. Ela apenas comentou que eu deveria procurar um médico, que tristeza em criança assim não era normal. O único médico que eu conhecia era o doutor da escola, seu Matias, que vivia faltando.
Tinha a dentista do serviço de atendimento à comunidade que ficava no bloco B, dona Sulamita.
Matei a terceira aula e fui até lá. Fiquei na sala de espera aguardando o último paciente ser atendido. De repente a dona Sulamita abriu a porta sanfonada achando que o consultório estaria vazio e me notou. Achou estranho uma menina de sete anos ali sozinha mas me chamou para entrar e sentar naquela cadeira cheia de cânulas e barulhos de água corrente. Perguntou se eu tinha ficha ou carteirinha, fiz que não. Ela pediu pra eu abrir a boca e verificou a qualidade de minha escovação com a ajuda de um espelho redondo e pequenino, elogiou que eu não tinha cáries mas me chamou atenção para alguns cantinhos onde faltava passar o fio dental. Depois me deu um copo com flúor que eu pus na boca, enxaguei e cuspi numa panela com ralo à direita da cadeira. Nesse dia foi que aprendi que não se devia engolir o flúor.
Dona Sulamita então decidiu me perguntar o que eu fazia ali.
Respondi que me sentia triste e a professora Ivana me havia mandado procurar um médico.
Às vezes o terror da infância se anunciava em mim de maneira sombria, pelos medos que me rondavam nas noites em que minha mãe demorava para chegar do trabalho e, quando chegava, me angustiava o fato de lhe faltarem as forças para o amor. Também a doença de meu pai fazia de mim uma criança que carregava pensamentos terríveis na cabeça. Achava que todos morreriam, que minha irmã pisaria em um prego enferrujado e padeceria de tétano, achava que havia fumaça venenosa nos aparelhos de ar-condicionado da cidade, achava que o vizinho bêbado entraria em meu quarto à noite. Eu nunca tive receio de encontrar criaturas fantásticas ou monstruosas debaixo de minha cama, eram as expressões materiais da realidade que me atormentavam.
Comecei a chorar e cada soluço parecia desatar um dos mil nós acumulados em meu peito.
Dona Sulamita me abraçou até que eu me tranquilizasse, depois foi até um armário de gavetas e tirou de lá um punhado de doces que depositou sobre minhas duas mãos em concha.
Nunca pensei que encontraria todo aquele açúcar num consultório de dentista.
Dona Sulamita me fez prometer que eu não comeria tudo de uma vez, que guardaria alguns para o dia em que o circo chegasse à escola. Um circo lindo, de lona grossa azul, amarela e vermelha, cheio de palhaços, bailarinas, acrobatas e até um mágico. Perguntei se nesse circo teriam elefantes, dona Sulamita disse que os elefantes eram os bichos que arrastavam o circo pelas cidades e que eram tão amorosos que nós crianças poderíamos até subir nas costas deles para um passeio rápido que não os cansasse. Falou também que o circo poderia demorar para aparecer mas que se todos os dias eu pensasse com força em sua triunfal chegada, imaginando os mínimos detalhes do percurso e do picadeiro cheio de estrelas prateadas, ele se apressaria. Foi o que passei a fazer desde então. Eu estava maravilhada.