Tenho uma amiga de infância, uma irmã mais nova, de origem humilde, que vive há dois anos e pouco em outro país porque foi ameaçada pela polícia em Belém. Ameaçada de morte mesmo. Eles plantaram 44 petecas de pasta base de cocaína na casa dela porque o marido e ela não se dobravam aos assédios em seu bar. Eles exigiam propina e ela anotava os nomes e ligava pra corregedoria. Ela foi presa, depois anularam o inquérito diante da pressão popular, e o que se anunciou foram assédios compulsórios sobre ela, seu marido e sua família.
Eu nunca quis sair do meu país. Esse papo de ir embora não é tão simples. É doloroso pensar em partir daqui, ainda mais sem condições financeiras como tem grande parte da classe média que migrou pro exterior depois do golpe.
Meu pai foi diagnosticado com esquizofrenia em 79, era de esquerda, sandinista. Sofreu tortura psiquiátrica, foi internado pelas mãos truculentas de policiais. Até hoje isso marca a história de nossa pequena família, bem como nossa saúde mental.
Minha mãe morreu aos 56 anos de doença de pressão, característica da população negra. Morreu em um hospital péssimo de um plano de saúde barato que a política neoliberal nos vendeu como convite de ascensão à classe média. Ela era militante da saúde mental, cuidou dos atingidos pela Polícia Militar no massacre de Eldorado dos Carajás.
Tô lendo o Krenak e a Amelinha Teles disse o mesmo: há danos permanentes da ditadura e da militarização. O povo sofre na carne, no osso e na mente uma eternidade.
Não é nada massa ver seu pai amarrado numa maca de hospital psiquiátrico. Eu vivi isso quando tinha 16 anos, e a ditadura já tinha acabado faz tempo. Mas não. Ela não acaba.
As Mães de Maio lutam pela federalização dos crimes de maio, uma ação da Polícia Militar contra a população negra e pobre do estado de São Paulo.
Marielle Franco foi assassinada porque era preta, favelada e socialista.
O fascismo já começou e pela primeira vez, nessa semana de angústias – em que me arvoro fazendo críticas, brincadeiras e dormindo três horas por noite, conversamos em família sobre o que fazer se o fascista ganhar. Nunca achei que viveria isso na minha vida. Ter que pensar que posição ocuparemos na sociedade como família, individualmente. Ter que pensar em partir mesmo sem condições financeiras. Ter que pensar em interromper meus ofícios de vida, a literatura, o samba e a educação. Ter que pensar em cuidar do meu pai em um estado de terror que só vai piorar a condição psíquica dele.
São só elucubrações. Mas tiveram que ser feitas. Tenho uma irmã militante que está em risco contínuo. Homens encapuzados ameaçaram suas companheiras de partido essa semana, duas. Minha irmã é uma mulher negra, mãe solteira de uma menininha de nove anos.
É isso. Falo e repito. Uma ditadura começa e não acaba. Não acaba nunca. Se Bolsonaro for eleito, vai potencializar esse estado de coisas doentes e fora do lugar que nos acompanham nos subterrâneos da classe média e na vida cotidiana da população pobre e preta. Não façamos isso com nosso país. É o meu apelo. Esse é o meu apelo.
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